quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Arístides de Sousa Mendes

Uma assinatura minha salva uma vida.
Basta-me escrever o meu nome, para evitar que outro nome se transforme numa memória.

E o Consulado? Seria destituído, com toda a certeza! O fim da minha carreira... A vergonha do meu nome.

Uma assinatura minha salva uma vida.
Basta-me escrever o meu nome, para evitar que outro nome se transforme numa memória.

E depois, que fazer? Ninguém se atreverá a dar-me trabalho! E as meus filhos? E a minha mulher? De que irão viver?

Uma assinatura minha salva uma vida.
Basta-me escrever o meu nome, para evitar que outro nome se transforme numa memória.

E a Pátria? Serei eu contado entre os traidores? Será algum dia reposta a justiça? Será que Deus se lembrará deste gesto?

Uma assinatura minha salva uma vida.
Basta-me escrever o meu nome, para evitar que outro nome se transforme numa memória.

-

Arístides de Sousa Mendes é um desses bravos homens que aceita, de cabeça erguida, fazer uma escolha que não queria ter de fazer. De onde me é dado que a minha assinatura possa salvar uma vida? Arístides oferece não uma, mas vinte mil, que salvaram outros tantos judeus que conseguiram o livre-trânsito assinado pelo cônsul de Bordéus, à revelia das autoridades portuguesas.

Aristides morreu pobre e desacreditado para os homens. Muitas grandes histórias só têm um final feliz no céu.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O Transmissor

- Escuto, escuto! - dizia a razão à alma.
Não parecia receber qualquer resposta.

Entretanto, proliferavam interferências de banda larga e instável, oriundas do coração.

Correspondência de Guerra

- Mas, meu general...
- Não adianta, sargento. Vamos lutar até à última gota de sangue.
O sargento revoltou-se.
- "Vamos"? Ora, meu general!
- Que diz, homem?
- São aqueles desgraçados que vão morrer! Que direito temos de atirá-los assim para a morte?
O general olhou-o com altivez.
- Deve estar farto das insígnias que traz nos ombros... Pode sempre juntar-se aos seus amigos na trincheira e morrer com eles.
O sargento mordeu a boca.
- Vá transmitir as ordens do marechal aos soldados. Não retiramos.
E fazendo menção de sair da tenda de campanha, foi detido de seguida:
- Não.
- O quê?
- Não. Vou dizer aos homens para fugirem deste inferno. Não lutamos pela Pátria, nem pela Liberdade. Morremos sim pela ganância.
- Cobarde! Prefere a humilhação?
- Não confunda coragem com orgulho. E além, disso, não haverá maior coragem que a de assumir a derrota, quando ela é real. Morrer será fugir para não ver o que vem depois.
- Acabou-se a discussão. Faça o que lhe disse ou será destituído.
- Seja.
- Raios! Que militar miserável! Não lhe falaram sobre obediência na Academia?
- A obediência é um serviço à Liberdade e não ao despotismo. Obedecer não é aniquilar a inteligência, mas confiar no líder. Merece-nos essa confiança?

O Palácio da Memória

Transporei, então, esta força da minha natureza, subindo por degraus até àquele que me criou.

Chego aos campos e vastos palácios da memória, onde estão tesouros de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda a espécie. Aí está também escondido tudo o que pensamos, quer aumentando quer diminuindo ou até variando de qualquer modo os objectos que os sentidos atingiram. Enfim, jaz aí tudo o que se lhes entregou e depôs, se é que o esquecimento ainda não o absorveu e sepultou.

Quando lá entro, mando comparecer diante de mim todas as imagens que quero. Umas apresentam-se imediatamente, outras fazem-me esperar por mais tempo, até serem extraídas, por assim dizer, de certos receptáculos ainda mais recônditos. Outras inrrompem aos turbilhões e, enquanto se pede e se procura uma outra, saltam para o meio como que a dizerem: «Não seremos nós?». Eu, então, com a mão do espírito, afasto-as do rosto da memória, até que se desanuvie o que quero e do seu esconderijo a imagem apareça à vista. Outras imagens ocorrem-me com facilidade em série ordenada, à medida que as chamo. Então as precedentes cedem lugar às seguintes e, ao cedê-lo, escondem-se para de novo avançarem. É o que acontece quando digo alguma coisa decorada.

(...)

Tudo isto realizo no imenso palácio da memória. Aí estão presentes o céu, a terra e o mar com todos os pormenores que neles pude perceber pelos sentidos, excepto os que já esqueci. É lá que me encontro a mim mesmo, se recordo as acções que fiz, o seu tempo, lugar e até sentimentos que me dominavam ao praticá-las. É lá que estão também todos os conhecimentos que recordo, aprendidos ou pela experiência própria ou pela crença no testemunho de alguém.



Confissões de Santo Agostinho

A Persistência da Memória, Salvador Dalí

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Aprender a Pensar: o meu Ideal para o Ensino

"Espera-se que o professor desenvolva no seu aluno, em primeiro lugar, o homem de entendimento, depois, o homem de razão, e, finalmente, o homem de instrução. Este procedimento tem esta vantagem: mesmo que, como acontece habitualmente, o aluno nunca alcance a fase final, terá mesmo assim beneficiado da sua aprendizagem. Terá adquirido experiência e ter-se-á tornado mais inteligente, se não para a escola, pelo menos para a vida.

Se invertermos este método, o aluno imita uma espécie de razão, ainda antes de o seu entendimento se ter desenvolvido. Terá uma ciência emprestada que usa, não como algo que, por assim dizer, cresceu nele, mas como algo que lhe foi dependurado.

(...) Em suma, o entendimento não deve aprender pensamentos mas a pensar. Deve ser conduzido, se assim nos quisermos exprimir, mas não levado em ombros, de maneira a que no futuro seja capaz de caminhar por si, e sem tropeçar.

(...) Por exemplo, o autor sobre o qual baseamos a nossa instrução não deve considerado o paradigma do juízo. Ao invés, deve ser encarado como uma ocasião para cada um de nós formar um juízo sobre ele, e até mesmo, na verdade, contra ele. O que o aluno realmente procura é proficiência no método de reflectir e fazer inferências por si. E só essa proficiência lhe pode ser útil."
Anúncio do Programa do Semestre de Inverno 1765/66, Immanuel Kant

O Advogado

Depois de inflamada dissertação sobre o Direito, seus princípios e instituições, objectivos e valores, fundamentos e elevação, e após entusiasmados aplausos da audiência, o advogado perguntou ao amigo, enquanto retirava a toga:
- O que pensa da minha defesa, meu caro Mota Soares?
O outro pensou por momentos.
- A sua defesa foi verdadeira?
- Bom, meu caro doutor, bem sabe que por vezes a verdade pode ser contada de muitas maneiras diferentes...
- Compreendo. E a sua defesa foi justa?
- Depende da perspectiva. Na perspectiva do meu cliente foi, na perspectiva do réu, não, o coitado vai ficar sem tecto porque ficou desempregado.
- Estou a ver. Enfim, a sua defesa foi útil?
- Não, particularmente. A decisão do juiz não seria alterada, a lei é clara nestes casos.
- Então, o que quer que eu lhe diga?...
- Ora, talvez pudesse ter apreciado uma certa eloquência, digo, o poder da retórica, a grandeza das palavras na solenidade do momento.
- E de facto apreciei a forma. Mas creio que a estética deve servir o argumento e nunca o contrário. Se a sua dissertação não for verdadeira, nem justa, nem útil, de que serve compor o mais notável dos discursos? Será sempre enganador na sua falsidade, mau na sua injustiça e vazio na sua inutilidade.

A Terra Prometida

Vi, no fundo da linha, onde o calor distorcia as formas e as misturava num retrato surrealista, uma espécie de tranquilidade fresca que descansava à beira de um oásis secreto. Arrastei-me pela linha do comboio desactivado, mas as minhas mãos escaldadas, que se cortavam na ferrugem do carril, deram de si. Esforcei-me mais um pouco, movido pela sombra das palmeiras que vislumbrava ao longe, mas as pernas também me caíram, e depois os braços. Caminhava há dias, sem parar, mas não saía do mesmo sítio. Sentei-me e comecei a chorar.

Lembrei-me então que trazia uns binóculos velhos no bolso do casaco já roto. Tirei-os e tentei usá-los, mas não conseguia, porque os olhos estavam cobertos de água e sal. Adormeci na minha dor. Quando acordei, envergonhei-me daquela miséria e voltei a pegar nos binóculos. Mas era noite.

Fartei-me de estar naquele deserto seco onde eu tinha pena de mim próprio e me contorcia na minha preguiça. Levantei-me, na escuridão da noite, ajudado por uma vara que surgiu misteriosamente. Vi que escorria uma enorme luz das estrelas e percebi que, por vezes, se caminha melhor de noite do que de dia. Olhei na direcção do oásis e reparei num cartaz que dizia, numa língua esquecida: «Cuidado: Miragem!». Mudei então de rumo, e aí sim, comecei a andar.

Eu não tinha nada, e pouco sabia. As minhas mãos estavam vazias e a minha alma sentia-se só. A areia fina passeava-se pelo meu corpo ao sabor do vento, deixando uma camada de pó compacto que me fazia sentir mais denso. Aqui e ali, via-se o trilho serpenteante de uma cobra ou os vestígios de um cato espinhoso. As minhas pernas ganhavam forças.

Tinha estado tanto tempo no deserto sem me desertificar! O deserto é um labirinto de desespero para quem dele foge mas uma fonte inesgotável para quem aceita cingir os rins e vestir peles de camelo por um tempo. As paisagens da nossa vida só nos largam quando nos sentem iguais a elas. Só aí terão cumprido a sua missão - a Natureza é missionária! Do mesmo modo que só conseguimos deixar de olhar uma planície alentejana quando estamos cheios de infinitude, ou uma encosta do Douro depois de nos invadir a melancolia, do deserto só se sai quando se fica vazio, abdicando de enche-lo com coisas vãs ou acessórias.

Só mais tarde, ao cruzar-me com outro João, que andava à caça de gafanhotos, percebi que seria o deserto que me faria disponível para coisas maiores do que eu.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

O Aspirador

O Aspirador sugava tudo em seu redor, consumindo com fervor qualquer pó que pousasse perto de si. «Mais, mais!», gritava ele, frenético de loucura. Enchia a sua existência de ruído, ouvindo-se apenas a si. Absorvia, controlava, aprisionava. E quando se fartava do pó que sugara, mudava de saco.

Um dia desligaram o pobre aspirador da corrente, e ele escondeu-se na dispensa.

Imprevistos III

Estava no Chiado, a fazer tempo para o almoço que combinara com o pai, que nunca mais chegava. Já esgotara, com o olhar, todas as montras de vestidos e as fachadas de todos os edifícios. Distraída com a música que alguém tocava junto ao metro, lembrou-se de ir à Bertrand. Entrou, passeando-se pela literatura portuguesa em jeito de quem não procura nada de especial. Mas houve alguma coisa que lhe chamou a atenção no suporte que se erguia no final da sala.
- Não pode ser!...
Começou a folhear o livro apressadamente, a ler os subtítulos, a ver as imagens. Procurou, na contra-capa, a descrição do autor.
- É ele...
Fechou o livro. Chamava-se «O Balão», de Luís Magalhães.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

A Máquina do Tempo: Um Inventário de Enganos

O nosso pensamento viaja, muitas vezes, numa absorvente máquina do tempo. Facilmente nos ausentamos da realidade para visitar histórias passadas ou imaginar episódios futuros, consequências naturais da memória e da imaginação. Mas quando nos aventuramos no misterioso plano do irreal, viajando entre passado e futuro, encontramos diversas armadilhas. Gostava de escrever um pouco sobre elas.

I. O Passado

A recordação do passado traz, inevitavelmente, a ideia de que, em vários momentos, eu poderia ter agido de forma diferente. Primeiro engano: julgar o passado à luz do que sei hoje. Hoje sou diferente - esse próprio acontecimento mudou-me. Hoje, quanto ao passado, já não existem incertezas - naquela altura, existiam muitas. Hoje, vejo calma e desinteressadamente - naquele momento tive que tomar uma decisão onde eu era parte interessada. Ao pensar "podia ter sido diferente" em jeito de culpa, estou a misturar os planos: queria ter decidido no passado com o que sei no presente. Esta é a armadilha de omitir a dinâmica do tempo.

Segundo engano: procurar uma causa para tudo o que me fez sofrer no passado. Numa sociedade tão científica, estamos habituados a que tudo siga uma lógica de causa-efeito. Perguntar "porquê?" parece-nos natural, talvez mesmo, um direito que nos assiste. Mas o nosso caminho não é uma jornada rigorosa, que possa ser analisada por um psicologismo puro de se isto então aquilo. Nem tudo o que nos acontece na vida tem uma razão. Perguntar "porque é que isto me aconteceu" e não obter resposta não quer dizer que ainda não a tenha encontrado. Pode, simplesmente querer dizer que não existe resposta. Em vez de justificativo, devo tentar ser descritivo, isto é, perceber o que me foi acontecendo sem o querer explicar. Esta é a armadilha de me paralisar numa falsa questão.

Terceiro engano: rever o passado com um olhar de carência. Quando nos falta alguma coisa no presente, e não a conseguimos encontrar aí, a máquina do tempo parece uma solução tentadora. Se olhamos o passado com esta pre-disposição, avaliamo-lo à luz da nossa dependência. "Se não tivesse tomado aquela decisão hoje não estaria sozinho" ou "desempregado" ou "sem a simpatia do meu chefe". Mas uma decisão bem tomada pode gerar maus momentos, isto é, um mal presente e temporário não implica que eu tenha decidido mal. Esta armadilha é a do olhar carente, que tira conclusões erradas.

II. O Futuro

A idealização do futuro traz consigo convites sedutores, que nos deixam ficar, por vezes, absorvidos por miragens. Primeiro engano: olhar para o futuro como um conjunto de fotografias em que eu apareço, em vez de um filme contínuo. É fácil imaginar-me feliz em determinado lugar, com certas pessoas ou em determinada posição. Mas, muitas vezes, nesta criação não existem entretantos. Só aparecem os momentos-chave, os instantes gloriosos, o clímax da história: receber um diploma, casar, ganhar as eleições. Não imaginamos o percurso que nos leva até aí; avaliamos apenas a fotografia do futuro pelo seu aspecto. Será que eu quero o filme, ou só a fotografia? Esta é a armadilha de sonhar uma não-vida.

Segundo engano: Assumir que o meu compromisso só começa no futuro. "Para o ano é que vai ser", "No próximo semestre é que me vou esforçar", ou ainda "Quando tiver isto e aquilo serei realmente feliz". E por agora, contento-me em sonhar esse estado, o que dá menos trabalho do que vivê-lo já hoje. Só que quando atingir esse isto e aquilo, vai faltar sempre mais qualquer coisa. Esta é a armadilha de diferir a felicidade.

Terceiro engano: Imaginar um futuro surreal, cheio de coisas que nunca serão possíveis. É verdade que sabe bem sonhar que podemos voar, que vivemos no Renascimento ou que somos o treinador do nosso clube de futebol. Mas quando este sonho se torna quotidiano, torna-se difícil sair daí. Um hábito que não se contraria gera uma necessidade, escreve Santo Agostinho. O presente que se começa a alimentar de ilusão e de mentira torna-se vazio. Esta é a armadilha de sonhar um futuro ilusório.
-
Consciente das armadilhas da máquina do tempo, vou poder aprender as sábias lições do passado e entusiasmar-me com a preparação do futuro, sem me perder na viagem.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Ad Eternum

- Para sempre.
- Como?
- Sim, para sempre. Quero ficar contigo para sempre.
- Já pensaste no que estás a dizer?
- Já.
- E... Achas mesmo que é razoável pensar isso?
- Não. Mas se o amor for só razoável, não chega. Imagina o que seria um pai pensar se é razoável arriscar a vida para salvar um filho quando ele se está afogar. Ele salta logo para o mar, não salta?
- Sim...
- Porquê?
- Não sei. Talvez porque... a ligação é tão forte! Vem-lhe do coração.
- Achas que se tivesse mais tempo pensaria melhor sobre o assunto?
- Não. Poderia ter uma eternidade. A decisão seria sempre a mesma.
- Pois é. Sabes porquê?
- Tens razão: porque quando amamos, saímos do nosso eu. Mas isto não se pode comparar a...
- Espera. Há mais uma coisa que me parece importante nesta ideia do pai: é que o amor verdadeiro é incondicional.
- Então?
- O pai não salta apenas se souber que vai conservar a sua vida, ou se souber que vai conseguir salvar o filho. O pai salta, e pronto. Quando as pessoas se amam se isto ou se aquilo, aí sim, é pouco provável que fiquem juntas para sempre. "Amo-te se fores divertida, amo-te se fores arrumada, amo-te se ficares a estudar em Lisboa." E no dia em que isto, por alguma razão, deixar de acontecer? Acaba-se o amor? O amor temporal é um se em forma de enquanto.
- Mas parece-me humano ter dúvidas. Como é que posso saber que vou ficar a vida inteira ao lado da mesma pessoa?
- Claro que não sabes... Eu também me assusto ao pensar que vou ficar com alguém para sempre. No fundo, tenho medo de me fartar, de deixar de ter conversa, de caír na monotonia, enfim, de perceber que me enganei. Isso acontece com muitas pessoas, por isso este medo é realista. Mas a questão é... qual é que é a tua meta?

Noite de Verão

Estava uma noite mágica de Verão. O céu, salpicado de estrelas, cativava pela sua infinitude. Jesus deitou-Se ali mesmo, naquele pedacinho de relva perdido no mundo. Estava fascinado pelo alcance do Seu olhar. Por vezes passava as mãos pelos olhos para saber que não era apenas um sonho. E depois sorria, com aquele sorriso que só Ele sabia fazer.
Começou a pensar nos Seus amigos. Lembrava-se de um Pedro apaixonado que Ele carinhosamente tratava por irmão. Visitava-O a expressão decidida de João, que Ele adorava tirar do sério. Recordava as boas piadas de Tiago, cuja alegria sempre O tocava. Depois, lembrou-Se do cego que se atirara a Seus pés, naquela tarde, suplicando Misericórdia. Os olhos de Jesus ficaram brilhantes com esta recordação. Um só gesto Seu bastou para que Bartimeu visse. Aquele primeiro olhar de Bartimeu foi impressionante, uns segundos de silêncio que valeram uma eternidade. Quanto se amaram, nesse instante! E depois Bartimeu seguiu-O, na longa estrada empoeirada de Jericó.
- Obrigado Meu Pai! - Soltou Ele, enquanto os seus dedos brincavam com a relva.
Deteve então o Seu olhar na lua. Jesus gostava imenso de olhar a lua e de Se deixar seduzir pela sua magia. Jesus estava feliz. Aqueles momentos a sós com Deus Pai realizavam-No, faziam-No crescer. Sentia uma imensa paz, apesar do grande número de pensamentos que trazia consigo.
E enquanto olhava a lua, e rezava, deu-se, de repente, um "click" que O fez saltar de entusiasmo.
- Ena! Como é que ainda não Me tinha lembrado!....
Precisou de um lápis e de uma folha que logo apareceram. Sorriu. E começou a desenhar-me. Desenhava-me com toda a perfeição, cada traço era feito com cuidado e Amor. Fazia imensos efeitos com o carvão, e à medida que os fazia, compreendia-me. Por vezes, com certos riscos mais fortes, acenava docemente com a cabeça. E ia olhando com cumplicidade para o Céu, de onde Deus Lhe ia guiando a mão que desenhava.
Esteve toda a noite nisto. E, por fim, olhou-me, nos meus olhos. Amou-me profundamente. E assinou o meu retrato, como o pintor que assume uma obra.
Ergueu-Se, e deu Graças ao Pai, de braços abertos. E mal abriu os braços, lembrou-Se da cruz que O esperava daí a umas semanas. Então olhou para o meu retrato e sussurrou-me, comovido: "É por ti".Depois, guardou-me na Sua túnica, e seguimos juntos pelo caminho.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Às armas! (Discurso para o dia da Restauração)



A responsabilidade de um português do século XXI em nada é inferior à dos grandes conquistadores que ergueram, à custa de tanto suor e sangue, a nação mais antiga da Europa. A responsabilidade de um português do século XXI nada deve à dos bravos navegadores que, cruzando os mares, levaram a nossa língua aos quatro cantos do mundo. A responsabilidade de um português do século XXI não é menor do que a dos ilustres restauradores que, com amor à bandeira, se bateram corajosamente pela independência da nação.

A responsabilidade de um português do século XXI, a nossa responsabilidade, é construir o Portugal Maior que todos desejamos, o Portugal que de cauda da Europa se faça cabeça, uma ponte entre a Europa e o Mundo. A nossa responsabilidade é lutar, com todos os meios de que dispomos, por uma sociedade de progresso verdadeiro, cujos faróis sejam a Justiça e a Equidade, e cujos instrumentos sejam o trabalho árduo e o compromisso.

Portugueses: festejemos a independência da nação; mas deixemos de ser independentes da nossa sociedade. Sejamos, sim, independentes no pensamento e no espírito, para que vejamos sempre, com lucidez, aquilo que o país nos pede. Hoje, eu digo-vos: Portugal pede-nos envolvimento.

Reparai num Mundo dominado pelo desânimo e pelo descompromisso: Poderá, o nosso país, ser um exemplo de que a crença profunda na mudança transforma, de verdade, a sociedade?

Sim! Basta querermos.

Este é o tempo da unidade. Este é o tempo da restauração. Restaurar é reerguer, retomar, recomeçar. Neste dia de memória olhemos então para a frente.
Levantemos as nossas armas - o nosso trabalho e o nosso intelecto.
Mobilizemos mais forças - os nossos pais, filhos, e amigos.
Confiemos nos nossos generais – a Democracia e a Providência.
Nesta nova batalha, todos os braços são necessários, todas as vozes são precisas. Como poderemos não responder ao desafio?

Empenhai-vos, cada um de vós, no vosso trabalho. Interessai-vos e discuti as causas que vos preocupam. Envolvei-vos em associações, em partidos, em debates. Exigi, da classe política, um trabalho tão esmerado quanto o vosso. E lembrai-vos de todos aqueles que precisam de vós – e são tantos os que precisam! Porque o Portugal Maior só será possível numa cultura de entreajuda e solidariedade.

Não aceitaremos o imobilismo.
Não pactuaremos com a inércia.
Não aspiraremos um futuro pior do que o melhor possível: e esse futuro melhor, está nas nossas mãos.

A nossa missão é ser Portugal.
Viva Portugal!

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Imprevistos II

Nessa noite, ele leu e releu as mensagens que trocaram, enquanto se rebolava na cama.

Apesar de ter um péssimo humor, deixou-me a pensar em si. E se viesse tomar um café comigo?...

Veja lá, eu não me lembrei de si nem uma vez. Deve ser do meu mau humor... Onde é que me vai levar? Olhe que eu tenho medo de desconhecidos. Traga aquilo de que falou… E nada de surpresas, ouviu?

Você é engraçada!... Não se preocupe, vamos só a Belém e não vai lá estar à sua espera um balão pronto para levantar voo. (Você gostava, não gostava?). Nos pastéis ao fim da tarde, parece-lhe bem?

Sim, parece-me bem! Um dia ofereça-me o balão… Pode ser que eu o convide para me fazer companhia. Um beijo

...quem sabe. Nada melhor do que voar acompanhado. Durma bem!

domingo, 11 de janeiro de 2009

As contas de Deus

Para Ti, somar não quer dizer acumular: o crescimento é da ordem do ser e não do ter. Ganho quando me mobilizo, aumento quando me empenho, ultrapasso quando amo.
Para Ti, subtrair não quer dizer perder: hoje fico com menos para amanhã ser mais. Fecho para abrir, choro para rir, parto para chegar.
Para Ti, multiplicar não quer dizer repetir: a abundância revela-se num pouco que se faz muito, de forma dinâmica. Cada dia é diferente do anterior, cada homem é especial, cada palavra tem um significado diferente em cada momento.
Para Ti, dividir não é separar: a partilha gera união. Ligo-me sempre que ouço, sempre que rezo, sempre que ofereço.
Leva-nos para a Tua Primária e ensina-nos a fazer novas contas.

Porto (In)seguro

O pescador, admirado com a forma apaixonada como a nazarena, embrulhada no seu traje negro de muitas camadas, se destraía a olhar o horizonte enquanto salgava o peixe que ele lhe trazia, perguntou-lhe:
- O que é que amas?
- O mar.
- O que é que queres verdadeiramente?
- Pescar.
- Então, porque é que não arriscas...?

A Sombra

Às vezes as forças fugiam-lhe, desvanecendo-se misteriosamente. Multiplicavam-se então as pequenas necessidades, coisas inúteis cujo verdadeiro propósito era a distracção. «Foges!», sentia ele no seu coração. E quanto mais o sentia, mais imperativa se tornava a fuga. Os pensamentos tornavam-se mais cinzentos, e tudo parecia oco, vazio. Havia uma perturbação inexplicável, injustificável. Um travo amargo de quase. «Poupa-te!», recomendava-lhe essa voz que o endurecia de cepticismo. Perdia-se então em esquemas, deduções, charadas. Se...! E depois, surgiam os afectos miragem, que prometiam preencher mas que apenas esvaziavam.

Num desses dias, enquanto passeava sozinho pelo cais à procura não sabia bem de quê, reparou que alguém o acompanhava. Era a sua sombra. Estava definhada, encolhida sobre si própria. Lembrou-se então de alguns momentos em que a sua sombra fora muito maior do que o seu corpo. Recordava, em particular, as vezes em que a sombra o reflectira em quatro direcções, sem sequer se conseguir ver o seu limite. E apercebeu-se de que a sombra era apenas uma imagem de si próprio, projectada pela luz que o iluminava.

Começou, nesse dia, a pensar que tipo de luzes fariam a sua sombra ser gigante.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Imprevistos I

Cruzaram-se de repente.
- Desculpe, eu... Aaa...
- Não, eu é que...
- Eu distraí-me e...
Riram-se de embaraço. E olharam-se. Ele sorriu.
- Ainda bem, então.
- Desculpe?...
- Ainda bem que se distraíu. Assim pude olhar melhor para si.
Ela gaguejou.
- Não fique atrapalhada. Até porque já deve estar habituada...
Ela riu-se. Ele continuou:
- Deixe-me fazer-lhe uma pergunta.
- Espero que não me vá perguntar o meu nome...
- Estava cheio de vontade.
Ela abanou a cabeça, sorrindo, em jeito de quem entra no jogo.
- Seja um cavalheiro e diga-me primeiro o seu.
- Luís. E o seu?
Ela ficou a estudá-lo com o olhar.
- Não acredito que... - disse, olhando para o lado, e logo depois para ela - Não pode fazer bluff!
Ela riu-se novamente.
- Não estava a pensar nisso.
- Vê? - soltou ele, vitorioso, abrindo os braços - Você ía fazer.
- E se calhar ainda vou...
- Se calhar. - resignado - Mas depois, que piada é que tem?
Ela fez-se desentendida.
- Que tem... o quê?...
- Pare!... Diga lá, como é que se chama?
- Maria... Maria do Carmo.
Sentiu-se um impasse. Ele procurou qualquer coisa para dizer.
- Deu-me tanto trabalho que agora me deixou sem conversa.
- Não me parece que seja do género de ficar sem conversa...
Ele sorriu.

...

- Você sabe o que é que eu vou ter de lhe pedir.
Ela riu-se.
- Não peça.
- Dê-me o seu número de telefone.
- Porque é que haveria de lhe dar o meu número de telefone?
- Porque se não der, nunca vai saber.
- Você fala uma linguagem esquisita. E eu tenho mesmo de me ir embora.
- Está bem.
Ela ficou imóvel e surpresa com a resposta. Ele prosseguiu, com toda a calma:
- É por isso que me devia dar o seu número de telefone.
- Você irrita-me.
E deu-lho.

O Viajante

O louco passeava-se pela cidade comprometido com a sua causa: ria, pensava um pouco, metia conversa com as pessoas na rua. Era tão frequente encontrá-lo em momentos de completo desatino como em períodos de pura abstração. Era um homem conversador e distraído, sempre enfiado no seu colete cinzento desbotado, de onde escorregava o relógio de bolso. Dir-se-ia que vinha de outro tempo, que vivia noutro espaço. Quando lhe perguntavam o nome, ele respondia, solenemente, "o viajante".
- Sabes, meu caro Fernando, estou um pouco farto de ver as pessoas troçarem de mim, como se eu tivesse algum problema! - confessava ele à antiga estátua da Brasileira - E, pior: dizem "é louco", com um ar grave, que eu não percebo. Podiam dizer também "é alto", ou "é moreno", ou ainda "é parvo", mas não: sempre a darem-lhe com o louco.
Deixou-se estar um pouco a saborear o café na sua chávena invisível.
- Enfim, nada me vai deter. É preciso prosseguir com a campanha. - disse, levantando-se de rompante.
Mas logo se deixou cair novamente sobre a cadeira da esplanada.
- Ora! Vão continuar sem me perceber.
Nesse momento, o empregado, que já o ouvia há algum tempo, chegou-se perto dele e perguntou-lhe, divertido:
- Então diga lá, você anda a fazer campanha pelo quê?
O louco fitou o homem com um olhar agradecido. E declarou:
- O meu manifesto resume-se numa palavra: leveza. Afinal, para que serve um louco senão para que os outros percebam que são demasiado sérios?

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

O Eterno Desconhecido

- Boa tarde. Posso fazer-lhe uma pergunta?
O velho fitou-o com um olhar desconfiado.
- Diga lá... Mas olhe que...
- Não se preocupe - interrompeu - Não lhe quero vender nada. Nem quero sequer tomar-lhe muito tempo. Afinal, as coisas verdadeiramente importantes são simples e têm pouca conversa.
- Mas quem... eu... ora! - resmungou, encolhendo os ombros, e regressando às redes que arranjava.
- Olhe lá bem para mim.
O velho olhou-o então de lado, movido pela curiosidade.
- Não o conheço. O que é que queria saber, afinal? Olhe que eu não tenho o dia todo!
- É verdade, nunca me viste. Mas fui passando por ti ao longo da tua a vida...
Assustado, o velho distraía-se nervosamente nas redes.
- Mas quem é você?
- Fui horas, dias, anos. Fui verões, luas e marés. Fui o fluxo indelével que te levou pela vida fora. Sou a origem da memória! Curei-te feridas, ao meu ritmo compassado. Dei-te vigor e sabedoria. Levei-te para longe da tua dor. Sou a chave do crescimento! Agora retiro-te parte do que te dei, pois é essa a minha natureza. Afecto a tua lucidez, canso os teus membros, confundo os teus sentidos. Sou a marca da mortalidade!
O velho largou as redes vagarosamente, e pousou o seu olhar sobre o mar. E disse, com um suspiro:
- Tu és... o tempo!
O tempo envolveu-o então no seu abraço, que era, ora pacificador, ora inquietante.
- Demorei-me sempre o mesmo, apesar de tu não achares.
O velho deixou cair uma lágrima cheia de saudade.
- É verdade, umas vezes nem te senti, outras pesaste-me duramente... - disse, demorando-se em memórias longínquas.
E perguntou então ao tempo:
- Acabaste?
- Sim...
- Leva-me então. Sei que não és um fim.
O tempo sorriu languidamente. E exclamou:
- Espera, falta a pergunta!
O velho baixou os olhos. O tempo apertou-lhe o braço freneticamente, e disse:
- Sabias como sou breve. Quantos avisos te dei! Porquê, porque é que adiaste?...
O velho não respondeu. E mergulhou na eternidade.

Ao Mar!

Saltai, marinheiros, saltai!
Alimentai a vossa sede de Mar!

Vêde os sinais!

Eis a brancura da espuma - é a nata de um mar que ferve!
Senti o ardor da maresia - é o odor de uma lareira em brasa!

Vêde, vê-de o mar que arde!

Não vos apercebeis da vossa própria perdição?...

Navegais de mar em mar,
Cuidando que são as águas a causa do vosso abandono - mas não!

É essa barca,
Esse bote fétido em que navegais o motivo da vossa ruína!

Dai as vossas ordens, timoneiros!

Ao mar, ao mar!

Largai a embarcação corrompida!
Deixai as velas manchadas!
Esquecei os falsos capitães!

Ao mar, ao mar!

Vêde: há uma caravela no horizonte!

A decisão

Decidi, finalmente, concretizar uma ideia em que me tenho demorado nos últimos meses: criar este blog, onde pretendo contar-vos algumas das coisas que ocupam o meu pensamento e o meu coração.

Gosto imenso de escrever, mas apercebi-me de que só escrevo alguma coisa verdadeiramente boa quando a quero oferecer a alguém. Só assim me esmero, só assim me ponho por inteiro numa folha de papel.

Por isso, este blog é um presente para quem o quiser receber.

E assim conseguirei acolher com alegria a solidão de um moleskine nos fins de tarde em Belém.