quinta-feira, 26 de março de 2009

Duarte Noronha

- Frei Ritto…
- Eminência! – soltou o ancião, curvando-se respeitosamente.
O cardeal estendeu então o braço para o claustro, convidando o frade para um passeio.
- Vejo que a idade tarda em fazer em ti o seu efeito, meu velho.
O frade sorriu o gentil sorriso dos sábios.
- Não caiu sobre mim o peso da mitra, padre…
O cardeal respondeu com um sorriso distante, de quem regressa, em sonhos, à juventude.
- Como são os teus dias, meu amigo?...
- Em tudo iguais aos que conheceste, há vinte anos atrás. Leio, estudo, medito… Escrevo qualquer coisa. E os teus, Duarte?
O cardeal levantou o solidéu encarnado, penteando vagarosamente os cabelos grisalhos. Encostou-se então a uma das colunas que suportavam os arcos góticos do claustro, demorando o olhar na pequena fonte que existia no seu centro. E soltou:
- Como são diferentes os olhares do corpo e da alma… A idade ataca o olhar do corpo, que vai perdendo nitidez; por sua vez, o olhar da alma aumenta de precisão com o bater compassado do tempo…
- À alma agrada a distância. Aos olhos, não.
O cardeal suspirou. E soltou:
- Felizes os cegos, pois apenas vêem com a alma.
- Mais felizes os videntes que fecham os olhos para poderem ver melhor.
O cardeal abanou a cabeça.
- A minha alma desobedece-me, padre.
Frei Ritto sorriu levemente.
- Essa é uma notável propriedade do espírito. Repara: o corpo é tão obediente face à vontade que mal se distingue a sua ordem da execução. Mal dizes à tua perna: “Anda!”, já ela está em movimento. Quanto à alma, ordenas-lhe: “Converte-te!” e ela não revela similar diligência. O próprio Agostinho começa por chamar-lhe prodígio
- O que conclui então o santo?
- Que a alma obedece à vontade na proporção do querer. Se se trata de uma vontade tíbia, coxa, mole, a alma há-de oferecer-lhe uma resistência feroz. Se, pelo contrário, se tratar de uma vontade sólida e dedicada, há-de obedecer-lhe com fidelidade bem maior que a do corpo.
O frade fez menção de seguir, mas o cardeal tomou-lhe o braço.
- Espera.
O frade olhou-o nos olhos. E perguntou:
- Porque me procuraste?
O cardeal ficou em silêncio.
- Não é a mim que procuras, mas a ti.
O frade abraçou-o fraternamente.
- Anda depressa, tenho de te mostrar uma coisa.
Frei Ritto levou o cardeal até à sua cela e apontou para uma cadeira velha que lá estava, dizendo-lhe que se sentasse. Depois, procurou uma caixa debaixo da sua cama e, destapando-a, começou a retirar folhas de diferentes tamanhos, densamente escritas, salpicadas por fotografias. O cardeal começou a vê-las, e apercebeu-se que falavam de si. Eram memórias de momentos importantes da sua vida, de aprendizagens, de experiências, de amizades, um inventário de milagres que aconteceram e que ele já mal recordava. Aquelas folhas transformaram-se numa sonda interior e profunda que o levava para junto de si. E há medida que as passava, ia sorrindo com uma enorme paz.
- Conheço-te desde que nasceste, Duarte…
Frei Ritto olhava pela pequena janelinha da cela, que dava para um jardim solarengo.
- Todos precisamos de sentir que pertencemos a uma história, pois é ela que nos dá identidade e nos faz sentir amados. Lembra-te de ti, e saberás quem és.
O cardeal acenou com a cabeça. Deixou-se estar a olhar o frade por uns momentos. E soltou, intrigado:
- Porque é que os pais me chamaram Duarte?