quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Cansaços

«Ele não teve sequer uma pedra onde repousar a cabeça»

Evangelho de S. Mateus, cap 8 - vers. 20

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Dia-a-Dia

Fazer o que quero,

Querer o que faço.

Uma questão de prefixos

Des-interesse,
Des-ânimo,
Des-contentamento,
Des-espero,
Des-norte,
Des-governo,
... ,

mostram que existe um claro problema de prefixos na sociedade contemporânea.

Guião do 5º Encontro de Preparação para o Crisma


Será o Espírito tão complicado assim...?



Representação Renascentista do Espírito Humano

.
O sopro de Deus que transforma o homem

- Podemos comparar o Espírito a um jornal, com dois dossiers interligados: o dossier Eu, e o dossier Deus.

- Como qualquer jornal, é preciso lê-lo para conhecer o seu conteúdo. Posso ler só os títulos, ou também o desenvolvimento das notícias (a minha história e a história da Salvação) e os comentários dos colunistas (as pessoas que me conhecem melhor, alguém mais experimentado do que eu na Fé).

- Uma leitura profunda deste jornal e uma vontade decidida de subscrever as suas ideias TRANSFORMAM-ME: este é um aspecto central a nossa Fé. O Espírito tem uma natureza transformacional. O Espírito converte, no dia-a-dia, o meu olhar, as minhas palavras e as minhas atitudes. É, simultaneamente mapa e bússola, porque me ajuda a inventariar os caminhos possíveis e me permite decidir qual é o melhor para mim. Não se trata, assim, de uma Fé geral e normativa mas concreta e dinâmica.

- O Espírito já foi oferecido à Humanidade (Pentecostes) e a mim próprio (Baptismo). Eu já estou no Espírito. “Muitos são os chamados mas poucos os escolhidos”: todos receberam o Espírito mas nem todos lhe aderem; todos estão envolvidos pelo Espírito mas nem todos o absorvem. O Escolhido é, curiosamente, aquele que escolhe seguir o Espírito; é Escolhido no sentido em que, depois de ele próprio escolher, essa escolha é assumida por Deus. Como Deus só pode assumir a escolha de quem efectivamente o escolheu, poucos são os Escolhidos. Mas, à priori, todos fomos escolhidos à data da nossa Criação.

- Através do Espírito manifesta-se o poder de Deus: nos milagres quotidianos (dos quais mais um dia da minha vida é o maior de todos) e nas pequenas tarefas do meu dia posso superar-me e ser testemunho de Deus, pois o “Espírito do Senhor ungiu-me”, à semelhança de Cristo, “para ser luz entre as nações”.

Mesa de Trabalho

M.
.
- João…
- Diz!
- Vai encher a minha garrafa de água… Vais?
- Não.
- Vá lá…
- Agora não posso, Margarida …
- És um chato, percebes?... Nunca mais falo contigo. Vá lá…
- Hum…
- Vais?
- Daqui a um bocadinho.
- Mas tem de ser agora!
- Agora não posso.
- Ó João! Tu prometeste!
- Não prometi nada!
- Prometeste sim, que eu ouvi. És um mentiroso, percebes?...
- Não sou nada.
- És! Um grande mentiroso. Vou pedir ao Paulo… Paulo! Vai encher a minha garrafa!... Vais?
.
R.
.
- João!
- Sim…
- O nosso post?
- Ainda não está.
- Ainda não está?! Mas tu tiveste o fim-de-semana todo!...
- Mas não estava inspirado, Rita…
- Já viste, Margarida? O João ainda não fez o nosso post. Cá para mim, nunca vai fazer!
- Eu não falo com ele. Ele é um grande mentiroso.
- O João deve estar mais entretido a fazer campanha, não é, João?... Hoje até trouxe a sua gravata Príncipe de Gales.
- O que é que tem a minha gravata Príncipe de Gales?...
- Nada. Nós já sabemos que tu pertences à Opus Dei.
- Rita, eu já te disse que não sou da Opus Dei.
- Então és do quê?
- Não sou de nada.
- Margarida, o João é militante da JSD.
- Não sou nada!
- Ai não? Então que livro é que tens aí?...
- É um livro de filosofia política.
- Já viste, Margarida?... O João é mesmo estranho.
- Aaargh!!
- Ih ih! Já conseguimos irritar o homem.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Um novo modelo de diplomacia

O jornalista Pedro Viegas entrevista um simbólico Ministro dos Negócios Estrangeiros que expressa, de forma didáctica, as opiniões do autor deste espaço em relação a uma série de assuntos de política externa.
.
PV: Senhor ministro, a sua visita mais recente a Angola foi alvo de grandes críticas, por poder ser entendida como um apoio à presidência de José Eduardo dos Santos. Pergunto-lhe: uma democracia pode apertar a mão a uma ditadura?
.
MNE: Boa noite, Pedro. A democracia não só pode, como deve apertar a mão a qualquer outro estado soberano, qualquer que seja a sua forma de governo e a natureza do seu sistema político. Se a democracia se recusar a aceitar a diversidade - por muito que as formas de que essa diversidade se reveste lhe possam, por vezes, gerar repulsa - será a negação de si própria. A democracia não pode pretender acolher apenas outras democracias, marginalizando os estados que, pelo seu estádio de desenvolvimento ou pelas suas especificidades culturais, não a subscrevem. O processo de imposição da democracia parece-me uma grande falácia.
.
PV: Essa posição, diria, diplomática, pode manter-se mesmo face ao desrespeito pelos direitos humanos?
.
MNE: Esta posição não é meramente diplomática, é fundamentalmente estratégica. É muito fácil adoptar uma posição dogmática e dizer: "não falamos com países que não respeitam os direitos humanos", aplicar sanções e excluir esses países dos processos multilaterais. Este tem sido, aliás, o posicionamento da maioria da diplomacia europeia nos últimos vinte anos. Mas eu pergunto: será que deu algum fruto? Não. Sabe porquê? É que este tipo de diplomacia é profundamente demagógico.
.
PV: Em que sentido?
.
MNE: Em todos! É a diplomacia mais conveniente para os países desenvolvidos porque, ao mesmo tempo que os exibe como grandes defensores da democracia, demite-os de responsabilidades ulteriores. Criou-se um consenso tácito entre os países do Ocidente no tipo de relacionamento que se deve manter com África que é fundamentalmente laissez faire. De quando em vez, lá assistimos a uma mobilização episódica para relembrar o interesse da Europa na democratização do continente, com um pano de fundo de ajudas e de perdão de dívida irracionais.
.
PV: O senhor ministro pensa, portanto, que os países desenvolvidos não devem perdoar a dívida dos países mais pobres e que não os devem financiar?
.
MNE: A maneira como me coloca essa pergunta é exemplificativa do sucesso que esta demagogia diplomática tem junto das pessoas. Repare, Pedro: você reconhece, seguramente, que existem grandes problemas em África (continuo a citar este continente, mas poderiamos, evidentemente, falar de outros), como a pobreza, a guerra ou a fome. Reconhecerá também que as desigualdades para com os países do centro são demasiado grandes, diria mesmo, imorais. Todavia, fica descansado ao pensar que o seu país manda para lá dinheiro e perdoa dívidas, porque acha que isso deve ajudar alguma coisa. Missão cumprida, pensará você. Mas tudo isto é uma grande ilusão. Perdoar dívidas é criar espaço para que o endividamento seja crónico, sistemático. E enviar dinheiro sem contrapartidas é criar vícios e expectativas terríveis. Resumindo: a estratégia diplomática ocidental para o desenvolvimento assenta na ilusão de que estamos a ajudar os mais pobres. Não sei se se recorda que o objectivo das Nações Unidas para 2010 era a erradicação da fome...
.
PV: Mas existem diversos exemplos em que a pressão internacional tem apresentado resultados concretos. Recordo-me de Timor e do Kosovo, por exemplo...
.
MNE: Os exemplos que referiu são excelentes. De facto, o Ocidente conseguiu, com grande empenho, a libertação de Timor e a independência do Kosovo. Mas o que fez a seguir?... O fenómeno mais curioso desta diplomacia laissez faire de que falo é que por vezes tem espasmos. Precisa de se afirmar, de dizer que existe, para logo desaparecer. É uma mobilização episódica, que não tem qualquer ponta de estratégia. Os diplomatas europeus chegam a roçar a ingenuidade. Depois dos séculos que a Europa demorou a alcançar a democracia, pensam que a vão conseguir implementar em três dias em países que sempre viveram em regimes autoritários ou tribais. O Iraque e o Afeganistão são os dois exemplos mais actuais. Agora, temos duas bombas-relógio na mão.
.
PV: Há pouco falou das Nações Unidas. Que responsabilidades poderão ser imputadas a esta organização?
.
MNE: Diversas. A ONU tem vindo a enfraquecer-se, a dividir-se, num processo que me faz lembrar o do falhanço da Sociedade das Nações, antes da Segunda Guerra Mundial. As principais potências usam-na mais como um espaço de disputa de forças e de promoção de interesses do que como um lugar privilegiado de cooperação e promoção do bem comum. A falta de carisma na liderança e os problemas de financiamento não ajudam. Não me parece que o actual modelo de funcionamento vá durar muito tempo. A ONU precisa de uma profunda restruturação. Até porque os tempos do multilateralismo estão a acabar.
.
PV: E o que é que o substituirá?
.
MNE: O minilateralismo. Os países estão a aperceber-se que é impossível gerar consensos quando há vinte, trinta ou cem países envolvidos nas negociações. Veja o impasse que a própria União Europeia vive na sequência de um multilateralismo extremo... Ou a Organização Mundial de Comércio, que há anos tenta construir um acordo alargado para o fim do proteccionismo, e não consegue.
.
PV: Como é que a ONU poderá adaptar-se a esse contexto de minilateralismo sem desaparecer, simplesmente?
.
MNE: A ONU terá de rever a sua própria dinâmica institucional de funcionamento. Uma alternativa possível seria passar a funcionar em comissões com, por hipótese, três países de cada continente, com responsabilidades plenas para decidir sobre determinadas matérias. Cada país estaria representado em apenas uma das comissões, ficando nessa mesma comissão por um periodo de dois anos e passando a outra no mandato seguinte. Este modelo permitiria aliviar a Assembleia Geral, para que se concentrasse apenas nos assuntos mais relevantes.
.
PV: O senhor ministro tem aqui criticado a diplomacia ocidental de forma bastante severa. Retomo a questão com que começámos esta entrevista, sobre a sua visita a Angola, para lhe perguntar: qual será a diplomacia alternativa?
.
MNE: Uma diplomacia estratégica e eficaz, sobretudo. Uma nova maneira de trabalhar, mais centrada nos povos que sofrem do que nos seus governantes. Quando falo de diplomacia estratégica, proponho um plano de acção com linhas claras e objectivos concretos, que não viva de episódios soltos. Dou-lhe um exemplo do que me parece a ausência de estratégia: a relação dos Estados Unidos com a Coreia do Norte e, em particular, a visita de Bill Clinton para resgatar as jornalistas condenadas. A diplomacia vive hoje, à semelhança da política interna, da sede de casos com protagonismo, diria mesmo, comerciais. A componente simbólica da diplomacia está tão exacerbada que faz esquecer a componente material. Note: Bill Clinton vai buscar, com sucesso, duas jornalistas aos campos de concentração coreanos e parece que fica tudo resolvido. Mas não: centenas de milhares de pessoas continuam condenadas a trabalhos forçados e à tortura. Sarkozy faz pressão sobre a Colômbia para obter, das FARC, a libertação de uma refém francesa e, ao consegui-la, parece que já não existe nenhum problema para resolver. Não pode ser.
.
A minha alternativa é que nos deixemos de show-off, e passemos à acção. Temos de voltar a acreditar que é possível ajudar os países pobres. Só que temos de perceber que não pode ser com um modelo estrito, que tente apenas fazer de África uma semi-Europa. Nós, ocidentais, temos de deixar esta nossa arrogância, que vem do tempo dos descobrimentos, de achar que vamos levar a salvação a todo o lado. Se for preciso apertar a mão a José Eduardo dos Santos para poder ajudar o povo angolano, eu até lhe darei um abraço.
.
PV: Mas há sempre uma questão de princípio...
.
MNE: Para mim, a grande falta de princípio é continuarem a existir milhões de seres humanos a morrer à fome enquanto nós persistimos na abstração e nas medidas fáceis ou politicamente correctas. Veja o caso do Zimbabwé: de facto, é impossível não deplorar Mugabé. Mas, na verdade, quem é que será prejudicado com as duríssimas sanções impostas pelo Ocidente? O povo, evidentemente. Mugabé não passará fome, nem morrerá. Mas o seu povo viverá ainda mais miseravelmente. Veja como ele se tem aguentado, ainda que com o artifício da suposta partilha de poder com a oposição... O olhar dogmático do Ocidente, com o seu livrinho de soluções pré-definidas, ainda lhe deu oportunidade para atribuir as culpas da fome ao estrangeiro junto do seu povo. Ora, eu considero que a diplomacia requer eficácia, ainda que isso exija posições aparentemente mais coniventes... O futuro mostrará que foram, sim, inteligentes.
.
PV: Como assim?
.
MNE: Se você quer implementar a democracia num país tem de o desenvolver, e não esperar apenas que aconteça o contrário. Só uma sociedade com uma base mínima de crescimento económico e educação poderá estar preparada para receber um regime que, por natureza, é frágil. Ou, usando outras palavras, num regime cuja força são os cidadãos, eles têm de estar estáveis. É dessa estabilidade que depende a vitalidade do regime. As democracias da América Central são precárias porque os cidadãos não têm estabilidade material. Você só se vai preocupar com a liberdade se tiver o estômago cheio. Desde modo, no meu ponto de vista, e ao contrário do que é lugar-comum, é necessário dialogar com os ditadores - não para os tentar convencer a mudar, debaixo de ameaças, mas para conseguir entrar nos seus países através das nossas empresas.
.
A maioria dos estados autoritários são personalistas, isto é, nascem e morrem com o ditador que lhes deu origem. Depois, os militares tomam o poder temporariamente e encontram um sucessor que lhes garanta os privilégios. Pode até haver uma tentativa de democratização, mas que é logo asfixiada. E tudo volta ao mesmo. É preciso quebrar este ciclo.
.
PV: A sua solução passaria então pelo investimento?
.
MNE: Precisamente. Em vez de ajudar directamente os países, penso que deveriamos ajudar as empresas que pretendessem ir para lá, subsidiando-as e criando um clima político favorável junto dos governos locais. Seria uma forma sustentada de gerar emprego, e é aí que tudo começa.
.
PV: Muitos dizem que é na educação...
.
MNE: Novamente, falamos de um estádio posterior ao da estabilidade económica. Os pais só vão deixar (e incentivar) que os filhos vão à escola quando deixarem de precisar que eles trabalhem no campo ou nas milícias para que a família sobreviva. Retomando a sua questão: se eu conseguir acordar com José Eduardo dos Santos um regime favorável para o investimento português estarei a promover uma ajuda muito mais sustentada do que perdoando dívida ou enviando dinheiro. Parece-me que cada país deveria escolher dois ou três parceiros estratégicos subdesenvolvidos pelos quais se responsabilizasse, numa lógica semelhante ao de uma tutoria académica...
.
PV: Mas isso não representaria uma nova forma de colonialismo?
.
MNE: Isso é um fantasma que vai deixar de existir no dia em que os países pobres virem que a nossa ajuda é eficaz. Nós não nos tornámos uma colónia francesa ou espanhola pelo facto de esses países e das suas empresas terem um papel fundamental no nosso desenvolvimento. É preciso agir e deixar os falsos paradigmas, que não são mais do que desculpas.
.
PV: Senhor ministro, uma última pergunta: qual o papel de Portugal no contexto que acaba de descrever?
.
MNE: Um papel de relevo, Pedro. Portugal é um país que tem características muito interessantes de um ponto de vista diplomático. É suficientemente pequeno para escapar a uma série de grandes interesses que movem o G8, e é suficientemente grande para estar entre os trinta países mais ricos do mundo. Para além disso, tem um historial de diplomacia quase milenar e um perfil pacifista. É um país priveligiado do ponto de vista geo-estratégico, e tem visto a sua independência energética crescer significativamente através das energias renováveis. É o perfil de um país moderador. Falo até de conflitos internacionais: pergunto-me se não seria mais interessante ter países deste tipo a tentar a paz em Israel do que potências que apresentam interesses inequívocos de um lado ou de outro.
.
De qualquer forma, no que respeita à ajuda ao desenvolvimento, espero que sejamos um exemplo a seguir. Temos todas as condições: empresas com vontande de investir, know-how e argumentos para apresentar aos governantes locais. Falta a vontade política.
.
PV: Muito obrigado, senhor ministro.
.
MNE: Sou eu que agradeço, Pedro Viegas.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Da Ética e do Direito

- Nobilíssima Ética! - começou o Direito - Consta que as empresas pretendem ensinar-te em cursos on-line.
- Ai sim?... - respondeu ela, distante.
- Na verdade, desejam dedicar-te até um departamento.
A Ética sorriu, ironicamente.
- E que te parece isso, ilustríssimo Direito?
O Direito reflectiu por instantes.
- A doutrina divide-se... - suspirou, melancólico.
- Então? - questionou a Ética, agora interessada.
O Direito adquiriu a sua forma Natural.
- É justo, distinta Ética, que não sejas tratada abaixo de mim. Se dos homens mereço toda a espécie de instituições, despesas e cuidados, deveriam eles oferecer-te não menos consideração.
Mas, depois, positivou-se.
- Todavia, o que será a tua legitimidade, nessa nova condição, senão eu próprio, o Direito?...
- Como assim?... - perguntou ela.
- Quem te definirá, Ética?... Quem dirá o que és, de que modo de te realizas e em que situações te manifestas? Quem te limitará, senão a lei?... Quem te assistirá, senão a sua coacção? Passarás a ser uma esfera de mim mesmo, e perderás a tua soberania.
- Falas verdade, Direito, como é próprio da tua natureza. Se me reduzirem a um departamento e a um conjunto de procedimentos, não serei mais que uma adenda aos teus códigos.
- Que fazer, pois? Que dizer aos homens, para que não te confundam comigo?...
A Ética olhou pela janela do conhecimento. E respondeu:
- Lembremos-lhes Deleuze: "Ética é estar à altura do que nos acontece".

Confiança

(...)

- Deixe-me dizer-lhe que...
- Não diga. Eu sei.
Ele hesitou.
- Será que você também...?
Ela cobriu-lhe a boca com os dedos, suavemente.
Olharam-se.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Descomplicando

Depois de toda a espécie de impedimentos, condições e dificuldades que ele levantara na discussão, Matilde perguntou-lhe:
- Porque é que você é tão complicado?
Ele abanou a cabeça.
- Nem eu sei…
- Então descubra!
O homem riu-se.
- Como se fosse assim, fácil…
- É por ser fácil de você não o faz. Só gosta de coisas difíceis. Despreza o simples.
O homem ficou pensativo.
- Pois…

Tarde Vos Amei

Tarde vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova,
tarde vos amei! Eis que habitáveis dentro de mim,
e eu lá fora a procurar-vos.
Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes.
Estáveis comigo, e eu não estava convosco!
Retinha-me longe de vós aquilo que não existiria,
se não existisse em vós.
Porém, me chamastes, com uma voz tão forte
que rompestes a minha surdez.
Brilhastes, cintilastes e logo afugentastes a minha cegueira!
Exalastes perfume: respirei-o suspirando por vós.
Eu vos saboreei, e agora tenho fome e sede de vós.
Vós me tocastes e ardi no desejo da vossa paz.

Confissões, X, 27, Santo Agostinho

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Jogar às Escondidas

“- Um, dois, três…
- Não vale espreitar!
- Quatro, cinco…
- Oh Teresinha, tu estás a ver!
- Seis… Está quase! Sete…
- Oh, não jogo mais!”


- Lembra-se, António? Você perdia sempre…
- Oh, Teresinha! Você é que era uma batoteira!
- E você continua um mentiroso. Hoje não almoça! Está a ficar gordo e feio.
Ele aproximou-se.
- Pois olhe que você está cada vez mais bonita…
- Seu graxista! Não almoças na mesma.
O avô riu-se.
- Passámos a vida a jogar às escondidas, não foi, Teresa?
Ela olhou ternamente para ele.
- Foi. Mas eu não pensaria duas vezes se…
Entretanto, os miúdos chegaram da escola e começaram aos saltos pela casa, invadindo-a de canções e palhaçadas. O avô aderia às brincadeiras, sorridente, enquanto a avó abanava a cabeça, endireitando as almofadas do sofá. Por fim, seguiram para a mesa. António reparou que a mulher o olhava com aquele olhar imenso que só os mais velhos sabem fazer. Ela confessou, enternecida:
- Vê o que eu lhe dizia?...
Ele pareceu confuso. Ela segredou-lhe, endireitando-lhe a camisa:
- Venha almoçar…
- Então, afinal já posso?... – perguntou ele, brincalhão.
Ela fugiu. Mas, quando já estava na saída para o jardim, onde a mesa de Verão os esperava, virou-se, e disse:
- Eu menti… Você continua tão bonito como dantes.
E saiu.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Discurso para o Dia de Portugal

Senhor Presidente da República,
Senhor Presidente da Assembleia,
Senhor Primeiro-Ministro,
Senhores Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça, do Tribunal Constitucional e dos demais Tribunais Superiores,
Antigos Presidentes da República e Presidentes da Assembleia da República,
Senhoras e Senhores Ministros,
Senhoras e Senhores Deputados,
Senhores Representantes do Corpo Diplomático,
Altas autoridades civis e militares,
Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa, Eminência Reverendíssima,
Ilustres Convidadas e Convidados;

O dia que celebramos é um dia retrospectivo, que nos recorda os grandes feitos dos nossos antepassados. É um dia em que nos toca a grandeza da nossa história, a elevação dos homens que a fizeram e o impacto que produziram no seu tempo.

Portugal mudou o Mundo. Nas palavras do grande Luís de Camões, que também hoje recordamos, Portugal deu, inclusivamente, novos Mundos ao Mundo. A esfera armilar foi um eixo de língua portuguesa, através do qual a nossa cultura cruzou oceanos, impregnando a terra de marcas que perduram.
Neste dia, chega-nos a bravura dos nossos marinheiros, a determinação dos nossos restauradores e a destreza dos nossos missionários; ilumina-nos o espírito dos nossos visionários e a fé do nosso povo; esclarece-nos a sabedoria da tradição e a fidelidade à bandeira.
Recordamos, hoje, também os perigos e guerras esforçados, o sangue que a República derramou e as lágrimas que a Liberdade escorreu. Porque a chama de identidade que arde nos nossos corações não foi acesa por nós, mas por aqueles que nos precederam, com pesados e silenciosos sacrifícios.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Portugal é uma pátria transformacional. O vínculo do desafio, do progresso, da mudança, é-nos intrínseco.
Antecipando o Mundo, construímos a novidade; abraçando a diferença, cruzámos muitas raças; persistindo no sonho, conhecemos a liberdade.
Muitas vezes dobrámos o Cabo das Tormentas e tantas outras conversámos com a morte. Nós, portugueses, somos um povo de honra e de missão, que vela o bem-estar dos seus filhos e a dignidade da nação antes mesmo de guardar a própria vida.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Há uma voz que clama: “Renovai as obras da vossa História”. É, aliás, um coro de vozes, as vozes dos nossos antepassados, que agonizam na inércia do nosso gesto e no silêncio da nossa ideia.
O desânimo e o desinteresse têm manchado a nossa política interna. O povo, fatigado pela corrupção e pela ineficácia, afasta-se do Estado, divorciando-se das suas necessidades e questionando os seus meios. O sistema é atacado pela sua maior ameaça, o abandono, que o deixa mais frágil e mais vulnerável.

Este dia deverá então ser, sobretudo, um dia prospectivo.

O passado quer inspirar o futuro mas carece de obreiros. O vento dos tempos pretende guiar-nos, mas precisa que desfraldemos as nossas velas. O povo quer ser mobilizado, mas necessita de líderes.
A vós compete tão sublime execução. É o vosso exemplo que o povo reclama e é nas vossas palavras que o povo quer encontrar direcção. A coerência do Estado e das suas instituições é o verdadeiro instrumento de mobilização social, ainda que secreto e silencioso.

Como podereis exigir justiça, se faltardes à verdade?

Como falareis de solidariedade, se vós mesmos fordes egoístas?

Como conseguireis renovar, se fordes a imagem do vício e do hábito?

Ao cabo da Boa Esperança só se chega de mapa. As nossas embarcações precisam de rumo, o povo exige uma estratégia.
As comunidades da diáspora juntam-se a nós neste grito de unidade, que clama por governantes sábios e servidores.
A liberdade, ameaçada pela corrupção e pela miséria, subscreve a nossa exigência. E o cansaço de frustrações anteriores reveste de urgência a necessidade de uma resposta.

Unidos a todos os povos que aspiram o progresso e a justiça,
Conscientes do nosso lugar no Mundo e na História,
Certos de que a nossa causa é nobre e urgente;

Hoje, dia de Portugal e das Comunidades, erguemos a bandeira que reconstrói a história do nosso futuro.

Viva Portugal!

A Sabedoria do Homem Espiritual

Santo Efrém nasceu em Nísibe, na Mesopotâmia, por volta do ano 306. Tendo sido ordenado diácono, exerceu o ministério na sua pátria e em Edessa, de cuja escola teológica foi fundador. A sua vida de intensa ascese não o impediu de se consagrar ao apostolado da pregação e de escrever diversas obras para combater os erros do seu tempo. É uma referência na tradição oriental da Igreja; os seus escritos constituem um marco por olharem o Cristianismo longe da mentalidade greco-romana, em razão do ambiente sírio em que cresceu. Morreu no ano 373, tendo sido proclamado doutor da Igreja em 1920.

“Fazei resplandecer, Senhor, o dia luminoso da vossa ciência e dissipai as trevas nocturnas da nossa alma, para que seja iluminada e Vos sirva renovada e pura. (…)
Nós Vos pedimos que, através daquela beleza espiritual que a vossa vontade imortal faz resplandecer mesmo nas criaturas mortais, nos leveis a compreender rectamente a beleza da nossa própria dignidade. A vossa crucifixão, ó Salvador dos homens, foi o termo da vossa vida corporal: concedei-nos que, pela crucifixão do nosso espírito, alcancemos o penhor da vida espiritual. A vossa ressurreição, ó Jesus, faça crescer em nós o homem espiritual e os sinais dos vossos sacramentos no-lo revelem como num espelho, para o conhecermos cada vez melhor.Na economia da vossa salvação, ó Salvador dos homens, está configurada a imagem do mundo espiritual: concedei que nele corramos como homens espirituais. Não priveis, Senhor, a nossa mente da vossa revelação espiritual, nem afasteis dos nossos membros o calor da vossa suavidade. (…)”

In “Sermões”, Santo Efrém

segunda-feira, 8 de junho de 2009

As Falsas Oportunidades

- Aproveita… - sussurrava-lhe o diabo – Se não for agora, nunca mais!
E, levando-o em sonhos ao pináculo do templo, onde séculos antes levara Jesus, mostrava-lhe tudo o que ele poderia ter, imediatamente.
- Vamos, só tens esta oportunidade! Porque esperas? Rápido, faz!
Ouvia-se uma música nervosa.
- Olha, todos o fazem!... Não me digas que vão todos para o Inferno… - dizia, com um sorriso malicioso.
O convite era cheio de uma sedução estranha, incómoda.
- Vejamos: não é assim tão mau! Não sendo óptimo, também não é nada de dramático. Se pensares bem, até pode acabar por gerar benefícios… Vai fazer-te bem. Tu precisas disto!
O homem cheirava o engano daqueles argumentos, mas a retórica do diabo era hábil e em forma de novelo.
- Espera: não é o teu Deus que perdoa sempre? Ele há-de perdoar-te mais uma vez, então. Lembra-te do filho pródigo. Não irá ele salvar a ovelha perdida? Acaso não é cheio de misericórdia?
Depois começou a falar freneticamente, a atormentá-lo, não lhe saindo da cabeça e, sobretudo, a sussurrar-lhe: é uma fatalidade, vais acabar por ceder. Enfraquecia-o, cansando-o.
Porém, o anjo veio em seu auxílio, trazendo consigo o espírito da Verdade. E disse, referindo-se ao pecado:
- Tu queres mesmo fazer isso?
O homem pensou por uns instantes. E, caindo na conta de si mesmo, respondeu, surpreendido:
- Não.
- Lembra-te: a acção livre é fruto da vontade e não da possibilidade. Não vás para a praia se não quiseres, ainda que esteja um sol extraordinário.
Ele consentiu.
- Diz-me: essa acção é boa ou má?
Ele não se demorou sobre o assunto.
- É má.
- Lembra-te: o mal é absoluto e injustificável. Não se torna mais aceitável por existirem outros males mais graves, nem mais legítimo por muitos o fazerem. Não roubes uma pastilha só porque há quem mate.
O homem concordou.
- E agora diz-me: tu acreditas que Deus perdoa sempre os teus pecados?
Ele respondeu, com devoção:
- Sim, eu acredito.
- Ele perdoa, de verdade. Diz-me ainda outra coisa: tu amas Deus?
- Eu não sei amar; mas, através do Espírito, amo-o de verdade.
- Lembra-te então: A fidelidade é uma questão de amor e não de medo. Muitos são fiéis por medo das consequências e não por quererem o melhor para o outro. Tu, porém, sê diferente, para que a misericórdia de Deus seja motivo da tua Esperança e não razão da tua queda. Coragem!
E desapareceu. Quando o diabo voltou a falar, o homem começou a rezar baixinho:

Em Vós, Senhor, me refugio; jamais serei confundido.
pela vossa justiça salvai-me.
Inclinai para mim os vossos ouvidos;
apressai-Vos em libertar-me.
Sede a rocha do meu refúgio,
e a fortaleza da minha salvação.

Porque Vós sois a minha força e o meu refúgio,
por amor do vosso nome, guiai-me e conduzi-me.
Livrai-me da armadilha que me prepararam,
porque Vós sois o meu refúgio.
Em vossas mãos entrego o meu espírito;
Senhor, Deus fiel, salvai-me.
Detesto os que adoram ídolos falsos;
eu, por mim, confio no Senhor.
Hei-de alegrar-me e regozijar-me com a vossa misericórdia,
pois vistes a minha miséria
e conhecestes a angústia da minha alma.
Não me entregastes nas mãos do inimigo,
mas destes aos meus pés um caminho espaçoso.

Mas eu confio em Vós, Senhor;
e digo: "Vós sois o meu Deus.
O meu destino está nas vossas mãos;
livrai-me dos meus inimigos e perseguidores.
Brilhe sobre o vosso servo a luz da vossa face;
salvai-me pela vossa misericórdia."

quinta-feira, 7 de maio de 2009

O Tira-Crises

- Então diga lá, homem...
O outro olhou o médico com receio.
- Eu... Sabe que... - e engasgou-se mais uns instantes - Pronto: dói-me a cabeça.
- Linear, meu caro: Paracetamol. - sentenciou o médico, pegando na caneta para escrever a receita.
- Não, você não percebeu: dói-me terrivelmente a cabeça. Dói-me sempre, impreterivelmente. Pesa chumbo, quase que ando de lado... - disse, abrindo os olhos, como que tendo uma visão - isso, isso! Ando de lado! Estou tão mal... Ah, doutor, e mal consigo dormir...
- Ah sim?... - disse o médico, chegando-se para trás na cadeira.
- Sim. E aqui à frente, também... - prosseguiu, apontando para a testa - E por vezes aqui, e já houve um dia em que...
- Hum...
- O que é que acha?
- Bem...
- É grave, doutor?... - perguntou, ancioso.
Ele franziu a cara.
- Pronto, estou acabado!
- É de uma gravidade... como dizer?...
- Ai!...
- Nula.
- O quê?!
- Absolutamente e categoricamente nula! Zero! Rien! Nada, homem!
- De certeza, doutor?...
- Sim.
- Ah...
- Você está óptimo, Teixeira.
- Estou?
- Nunca o vi tão rijo!
- Rijo!...
- Está perfeito!
- Estou mesmo perfeito! - rematou, caindo em si. - Muito obrigado, doutor! - sorriu ele, apertando freneticamente a mão do médico.
E saíu do consultório. Quando cruzava a esquina da praça, cantarolando, encontrou um velho amigo encostado à paragem do autocarro.
- Então Zé, como é que estás?
O outro respondeu-lhe com um suspiro.
- Epá, não estou grande coisa...
- A sério? Mas estás com bom ar, homem!
- Estou?... - surpreendeu-se ele - Mas sabes, não tenho nada de jeito para fazer...
- Ah sim?... Espera, não és tu que gostas tanto de escrever?
- Sou...
- Então e porque é que não tiras um tempo para escrever uma coisa à séria?
O outro hesitou.
- Pois, lá isso...
- E não eras tu que achavas muita graça a esgrima?
- Sim, esgrima é qualquer coisa!
- Então e se te inscrevesses de vez num curso?
- Olha, não era mal pensado...
O amigo fez uma pausa. E retomou, assertivo:
- Zé, tu estás cheio de coisas para fazer.
- Estou?...
- Atulhado!
- Ah!...
- Imensas coisas interessantes!...
- Imensas!
- Zé, tu até devias estar preocupado com a tua falta de tempo!
- Estou mesmo apertado! - disse, olhando para o relógio. - Olha, até logo!
E, deixando a paragem, seguiu, apressado.
Assim, o Tira-Crises foi-se espalhando pela cidade. E, ao anoitecer, todos perceberam que estavam muito melhor do que pensavam.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Imprevistos VI

Encostada a ele, ia lendo alto o último capítulo que ele escrevera para o Meeting Miss Blackberry.

Depois de agarrarem num mapa velho, olharam para o carro, e riram-se. O mini estava cheio, tão cheio que Miss Blackberry teve de entrar de uma maneira estranha.

- Ah!! Estás a chamar-me gorda! - disse Carmo, batendo-lhe com a almofada.
Ele riu-se.

Mas nada se poderá comparar àquele momento em que ela ligou o carro, em que começaram a transbordar aventura, cheios de vontade de gritar e, sobretudo, de acelarar.

- Mas vês quem sai a guiar?... - disse Carmo, triunfante.
- Isso é só Marketing. - disse ele, com um ar muito sério - Para cativar o público feminino, percebes?...
- Estúpido!

Não paravam de se rir sem saberem bem porquê. Cada vez que olhavam um para o outro, riam-se mais ainda, ao ponto de Mr ..... ter de gritar "Cuidado!", quando se aproximava um camião em sentido contrário.

- Porque é que o nome dele tem um espaço? Ainda não escolheste?
Ele abanou a cabeça. E disse:
- Adivinha quem vai escolher...

E aí, ela olhou uma última vez para ele, com aquele olhar que só ela sabia fazer e que o deixava embriagado.
- Pára o carro.
- O quê?
- Pára.
Miss Blackberry parou no meio da interminável estrada que cruza o deserto do Texas. Então, Mr .... saíu, contornou o carro, e abriu a porta dela. Rendido, encostou a cabeça à ombreira da porta e agarrou suavemente a cabeça dela. E, olhando-a nos olhos, disse-lhe, numa voz rouca: «Amo-te».

Ela sorriu, abanando a cabeça.
- Mr. Dreamer...

A Verdade

- Onde está Verdade, sabe-me Vª Exª dizer?...
- Ainda não chegou, está atrasada.
- Mentira! A Verdade nunca se atrasa. Senão, deixaria de ser Verdade.
- Compreendo. Nesse caso, estará seguramente aqui, apesar de não a vermos.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

A Casa sem Paredes

O velho, seguindo o canto das gaivotas, remou, no seu pequeno barco de madeira, até à jangada tosca em que o náufrago derivava há já vários dias. Ao ver o velho, o náufrago, chorando de alegria, perguntou-lhe quem o enviara, para que ele lhe fosse agradecer e pôr-se ao seu serviço. O velho sorriu.
- Chama-se Deus.
O náufrago perguntou-lhe então onde morava Deus, para que ele o visitasse.
- Vem ver!
O velho começou a remar e foi-lhe mostrando os lugares do Mundo. Levou-o ao gelo dos polos e ao calor dos trópicos. Mostrou-lhe ilhas paradisíacas e rochas tenebrosas. Apontou-lhe outros náufragos e capitães de grandes navios. E, por fim, enquanto lançava a âncora do barco, soltou:
- Em tudo o que viste habita Deus.
Os olhos do náufrago brilhavam. Mas o velho continuou.
- Mas tu ainda não viste a sua obra mais extrordinária!...
E aí desapareceu, deixando, no lugar onde se sentara, um pequeno espelho por onde o náufrago se olhou nos olhos.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

O Espaço e o Tempo

A caravela largara o cais de Belém há já algum tempo, mas Francisco Valladares não distraía o seu olhar de Lisboa, que desaparecia do horizonte. A certa altura, o capitão, encontrando-o de olhar fixo na silhueta da cidade, veio meter conversa.
- Agora, apenas teremos o mar por companhia...
Valladares parecia distante. Soltou então:
- Já viu? A torre de Santa Maria que, em seu redor, nos parece tão imponente, não é agora mais que um pequeno ponto no horizonte. Ainda há instantes era tudo, mas agora fez-se nada. Diluíu-se no espaço!
O capitão tirou o chápéu e coçou a cabeça. Respondeu:
- Como qualquer paixão, resta-nos a recordação.
- Mas também essa se desvanece, consumida pelo tempo...
- Talvez... Mas as recordações deixam sempre um sabor de si mesmas, ainda que o facto que as gerou já se tenha perdido. Não se lembrará de impressões passadas cuja origem desconhece?...
- Sim, claro. Mas são tão vagas e estranhas que não me atreveria a remexê-las.
O capitão sorriu e voltou a colocar o chapéu.
- Vai fazer-lhe bem este tempo de mar, meu caro senhor.
Fez menção de sair dali, mas Francisco deteve-o.
- Porque é que diz isso?
O capitão olhou-o por instantes.
- Sabe... A vida no barco faz-nos mais sinceros. Não temos para onde fugir!

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Quaresma

Nós te damos graças, Deus,
pela hora que passa,
pelo sonho do fundo da noite
que mantém vigilante o nosso desejo do Encontro.
Nós te damos graças
porque no grito da vida nua,
no labor e no repouso nos procuras.
Nós te damos graças
porque o teu Filho com as suas mãos tocou
a luz e a treva de que somos feitos
e nos enxugou as lágrimas
quando a navalha da morte nos feriu.
Nós te damos graças
porque nos saras do sistema mundano do agir
e nos emprestas a coragem que falta
para atravessar o mar das palavras sufocadas
e renascer através do esquecimento de nós próprios.
Nós te damos graças
pelo sopro que revigora o junco esmaecido
e nos liga ao caminho que nos leva à vida.

(...)

Carlos Furtado, op e amigos

O Caranguejo

Certo dia, reparei num caranguejo que se passeava à beira-mar, saltitando entre um lugar e outro, cavando aqui e estacando ali, sem se perceber bem porquê. Os pequenos olhos negros sobressaíam-lhe na frágil carapaça encarnada, que reluzia sob o sol escaldante. Por vezes, demorava-se sobre a espuma fina que o mar lhe trazia, rebentando distraidamente as suas bolhas. Outras vezes, apressava-se a fugir de uma vaga mais forte da maré que começava a encher.
O caranguejo vivia no limite incerto que separa a praia do mar, não havendo maneira de se decidir. Fugia assustadamente sempre que alguém se aproximava, até mesmo de uma criança que quisesse admirar a destreza das suas patas. Nas suas estranhas caminhadas, apenas andava de lado.
Decidi seguir o caranguejo e investigar a sua vida secreta. Esperei então, escondido por detrás das rochas, que o sol se diluísse no mar e a lua subisse ao palácio de onde governa a noite. À medida que entardecia, o caranguejo ficava cada vez mais nervoso, andando para a esquerda e voltando para a direita. Por fim, a noite caíu, e a lua surgiu no céu. Inesperadamente, o caranguejo paralizou-se, com o olhar fixo no astro, que deitava o seu reflexo límpido sobre o pequeno corpo encarnado. E aí reparei que lhe caíam lágrimas de emoção dos pequenos olhos negros.
- Estive o dia todo a olhar para ti... - disse a lua.
- Não é justo! Tu podes ver-me o dia todo, mas eu tenho de esperar pela noite. Ainda por cima, às vezes amuas e ficas três dias sem aparecer. És uma lua muito má.
A lua brilhou intensamente. Poderiam contar-se todas as suas crateras e mares.
- Oh, assim não vale... - disse o caranguejo, escondendo os olhos atrás da pata.
- Sabes que eu tenho mau feitio... Vá lá, não te zangues comigo.
Ele concedeu.
- Agora conta-me mais uma vez: como é que é o fundo do mar?...
- Só depois de me dizeres como é que é o outro lado do mundo!
Ficaram a conversar durante horas, tantas quantas a noite lhes ofereceu. E por fim, quando o sol já começava a espreitar o horizonte, ele escreveu qualquer coisa na areia, com as patas, que mereceu um sorriso cúmplice da lua.
Quando a lua desapareceu, e depois de o caranguejo se ter aventurado no seu banho matinal, saltei as rochas e fui ver o que ele escrevera. Não podia acreditar:

Nada é impossível, amigo Xavier.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Duarte Noronha

- Frei Ritto…
- Eminência! – soltou o ancião, curvando-se respeitosamente.
O cardeal estendeu então o braço para o claustro, convidando o frade para um passeio.
- Vejo que a idade tarda em fazer em ti o seu efeito, meu velho.
O frade sorriu o gentil sorriso dos sábios.
- Não caiu sobre mim o peso da mitra, padre…
O cardeal respondeu com um sorriso distante, de quem regressa, em sonhos, à juventude.
- Como são os teus dias, meu amigo?...
- Em tudo iguais aos que conheceste, há vinte anos atrás. Leio, estudo, medito… Escrevo qualquer coisa. E os teus, Duarte?
O cardeal levantou o solidéu encarnado, penteando vagarosamente os cabelos grisalhos. Encostou-se então a uma das colunas que suportavam os arcos góticos do claustro, demorando o olhar na pequena fonte que existia no seu centro. E soltou:
- Como são diferentes os olhares do corpo e da alma… A idade ataca o olhar do corpo, que vai perdendo nitidez; por sua vez, o olhar da alma aumenta de precisão com o bater compassado do tempo…
- À alma agrada a distância. Aos olhos, não.
O cardeal suspirou. E soltou:
- Felizes os cegos, pois apenas vêem com a alma.
- Mais felizes os videntes que fecham os olhos para poderem ver melhor.
O cardeal abanou a cabeça.
- A minha alma desobedece-me, padre.
Frei Ritto sorriu levemente.
- Essa é uma notável propriedade do espírito. Repara: o corpo é tão obediente face à vontade que mal se distingue a sua ordem da execução. Mal dizes à tua perna: “Anda!”, já ela está em movimento. Quanto à alma, ordenas-lhe: “Converte-te!” e ela não revela similar diligência. O próprio Agostinho começa por chamar-lhe prodígio
- O que conclui então o santo?
- Que a alma obedece à vontade na proporção do querer. Se se trata de uma vontade tíbia, coxa, mole, a alma há-de oferecer-lhe uma resistência feroz. Se, pelo contrário, se tratar de uma vontade sólida e dedicada, há-de obedecer-lhe com fidelidade bem maior que a do corpo.
O frade fez menção de seguir, mas o cardeal tomou-lhe o braço.
- Espera.
O frade olhou-o nos olhos. E perguntou:
- Porque me procuraste?
O cardeal ficou em silêncio.
- Não é a mim que procuras, mas a ti.
O frade abraçou-o fraternamente.
- Anda depressa, tenho de te mostrar uma coisa.
Frei Ritto levou o cardeal até à sua cela e apontou para uma cadeira velha que lá estava, dizendo-lhe que se sentasse. Depois, procurou uma caixa debaixo da sua cama e, destapando-a, começou a retirar folhas de diferentes tamanhos, densamente escritas, salpicadas por fotografias. O cardeal começou a vê-las, e apercebeu-se que falavam de si. Eram memórias de momentos importantes da sua vida, de aprendizagens, de experiências, de amizades, um inventário de milagres que aconteceram e que ele já mal recordava. Aquelas folhas transformaram-se numa sonda interior e profunda que o levava para junto de si. E há medida que as passava, ia sorrindo com uma enorme paz.
- Conheço-te desde que nasceste, Duarte…
Frei Ritto olhava pela pequena janelinha da cela, que dava para um jardim solarengo.
- Todos precisamos de sentir que pertencemos a uma história, pois é ela que nos dá identidade e nos faz sentir amados. Lembra-te de ti, e saberás quem és.
O cardeal acenou com a cabeça. Deixou-se estar a olhar o frade por uns momentos. E soltou, intrigado:
- Porque é que os pais me chamaram Duarte?

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Imprevistos V

Quando chegou a casa dele, chovia intensamente.
- Acha que merece?... – perguntou ela, apontando para a roupa molhada.
Ele riu-se.
- Tenho uma camisa que lhe vai ficar lindamente.
Cheirava a café. Luís correu a desocupar o sofá que estava cheio de livros.
- Desculpe a desarrumação…
- Como se eu já não soubesse! – disse, olhando para a lareira que crepitava – E esse café?...
Ele foi buscá-lo. E, na tampa da cafeteira, trouxe, enrolada, uma folha escrita a preto.
- Já reparou que o café sabe melhor quando traz um imprevisto consigo?
- Só conhecia as frases dos pacotinhos de açúcar… - respondeu ela, desenrolando a folha.
Leu-a. E abanou a cabeça, sorrindo.
- Você…
Ele envolveu a chávena de café com as mãos, olhando-a, de seguida.
- Inspiras-me
Ela corou.
- Esta casa é… - disse, levantando-se, e olhando pela janela que deitava para a encosta do castelo – igual a ti…
E virou-se para ele. Ficaram a olhar-se por um instante. Ela voltou a distrair-se na janela. Luís ergueu-se, e foi abraçá-la por detrás dos seus ombros. Continuava a chover abundantemente.
- Estava tudo muito certinho antes de eu aparecer na tua vida, não estava?... – perguntou ele, em segredo.
Ela virou-se, irritada, e fitou-o.
- Sim, estava, seu…
Ele beijou-a ternamente.
- Mas assim é muito melhor, blackberry.
Ela riu-se.
- O que é que eu tenho a ver com amoras?...
- Se tu fosses uma fruta serias uma amora silvestre. Das escuras… Meeting Miss Blackberry, é assim que lhe vou chamar. Gostas?...
Ela acenou, devagarinho, e deixou que ele a beijasse sob o som cruzado da chuva e da madeira em brasa a estalar.

A pequena folha da cafeteira escorregou para o chão, pousando sobre o tapete. Poderia então ler-se, numa letra discreta: “Estou a escrever um livro para ti.”

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Considerações sobre a Corrupção

1. A corrupção não é a característica de um regime, mas uma marca da natureza humana.

2. A corrupção emerge, ou da necessidade, ou da ganância.

3. O combate eficaz da corrupção, ao nível preventivo, situar-se-á, portanto, em dois planos: (a) a promoção do bem-estar económico-social e (b) a moralização da sociedade.

4. A noção de impunidade multiplica a corrupção.

5. A eficácia judicial será assim o terceiro plano do combate à corrupção ao nível preventivo.

A Perdição

Calou-se a Arte, para te deixar passar.

Não escreveu uma só palavra,
Não pintou nenhum retrato,
Não compôs qualquer música.

O belo eras tu.

Fascinada, a Arte quis olhar-te sob todos os seus prismas,
Fotografando-te e esculpindo-te no seu imaginário,
Dançando e cantando em redor dos teus ombros.

Tu ficaste num misterioso silêncio.

Quis a Arte esconder-te para não seres descoberta,
Morrendo de ciúme e de medo do lânguido acenar da Matéria,
Que, de dentro, te prometia os seus demorados prazeres.

Tu insinuaste-te à Matéria.

E a Arte, ao ver-te escapar dos seus pincéis, enlouqueceu,
Numa fúria de desejo cego que te afastava ainda mais,
Perdendo-se, só, numa miragem de dor aguda.

Tu dissipaste-te.

A Arte odiou-te na sua ruína.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Carta de um Missionário Distante

Segundo o que consta em cartas anteriores, Pedro Moniz deixara, há alguns meses, a comunidade onde trabalhou durante um ano, uma pequena Igreja no meio de uma enorme cidade, para onde conseguiu atrair muita gente que pouco ouvira falar de Deus. Atento aos desafios da vida em cidade, e sensível à fragilidade da semente que Deus aí lançou, mantém intensa correspondência com a comunidade, que lhe vai fazendo chegar as suas dúvidas e receios.

Esta carta não faz qualquer menção temporal; não conseguimos, portanto, datá-la. Não encontrámos nenhum registo da existência de Pedro Moniz. Tão pouco nos pronunciaremos quanto à natureza dos seus escritos, apenas os publicando, neste espaço, pela singela marca da sua assinatura, a saber: «Pedro Moniz, Alegre Servo do Senhor».


Meus Irmãos;

Queira Deus que através das minhas palavras encontre consolo a vossa tribulação. Eu, enviado por Cristo a falar-vos do Evangelho, em Cristo partilho a vossa inquietude, que é uma marca da condição humana. Mas nem assim se afasta o meu coração dos firmes propósitos que o Senhor me comunicou, pois sei em quem pus a minha confiança.

O mundo convida-nos permanentemente a moldar o nosso desejo e vontade às circunstâncias. Pois eu digo-vos: sede como mexilhão firme, incrustando-vos no Senhor Jesus; não sejais como as algas, que apenas seguem o movimento das marés. Não confundais a flexibilidade cristã, que é fruto da confiança e da disponibilidade, com o relativismo pagão, que vos leva para longe da vontade verdadeira. Vós, que sois relativos, encaixai-vos apenas no absoluto, que é o único que vos pode completar. Se um relativo se alimentar de coisas relativas, como poderá exceder-se? Vós sois vasos, e não os seus moldes. Não vos afasteis da vossa natureza de decisores, deixando que outros escolham por vós. Se o sal perder o seu sabor, é inútil e é lançado fora. Antes conquistai os outros com o vosso sal intenso, para glória do vosso Pai que vos olha e ama.

A cidade move-se depressa e a toda a hora sois solicitados para novas coisas. Lembrai-vos que nada nos foi proibido, mas nem tudo nos convém. Vós quereis fazer a vontade de Deus, mas andais divididos na forma de a conhecer. Confiais em demasia no juízo da vossa mente, que é hábil e eloquente, e desconfiais da linguagem do coração, que é sábia e iluminada. Eu digo-vos: à semelhança de Maria, ponderai todas essas coisas no vosso coração. Não vos deixeis guiar pelas sensações; porém, não chameis de sensação à voz ardente que fala no interior do vosso coração. Construí uma ponte entre o coração e a razão para que colaborem na descoberta da Verdade, ao invés de divergirem. Se a vossa perna direita discutir com a esquerda, querendo ir uma para a frente e outra para trás, acaso chegareis a algum lugar? Do mesmo modo que o vosso corpo está coordenado, coordenai o vosso interior. Este é o vosso trabalho: preparar o caminho do Senhor dentro de vós.

No mais, não vos inquieteis, pois uma só coisa é necessária. Vós sois de Cristo e, por isso, aspirais viver em amor. Como nada nos pode separar do amor de Deus, já sois amados, de forma incomparável; amai muito, e assim completareis a vossa aspiração. Do mesmo modo, se muito amardes, muito vos será perdoado. Vencei o pecado através do amor e não da regra. Este será um sacrifício agradável a Deus que vos aproximará do Seu modo, pois Deus é perfeito e a caridade é o vínculo da perfeição.

Lembrai-vos em cada momento de desânimo que Deus vos segreda: és precioso a meus olhos. E em cada vez que a sombra da dúvida vos fizer hesitar entre o bem menor e o bem maior, procurai, na vossa alma, o fogo ardente de Cristo que sussurra: Tu, segue-me.


Convosco, em Cristo,

Pedro Moniz,
Alegre Servo do Senhor

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

O Sem-Graça

Antes de dormir, a mãe costumava sempre contar-lhe uma história.

Era uma vez um senhor que vivia na América…

- Oh mãe, onde é que fica a América?...
- Fica do outro lado do mar.
- Aaah… Mas dá para ver na praia?
- Não… É muito, muito longe…

Na América, as pessoas recebem, todas as manhãs, um jornal à porta de casa. Quando abrem a porta, o jornal já lá está à espera!...

- Ah! É como no Natal?
- Sim…
- Então na América é Natal todos os dias! Podemos ir viver para a América?
A mãe riu-se.

Só que o jornal que esse senhor recebia era diferente de todos os outros. Normalmente, os jornais contam as coisas que aconteceram no dia anterior. Mas esse jornal contava as coisas que se iam passar nesse dia!

- Então ele já sabia o que ia acontecer?
- Sim! Assim podia antecipar as coisas. Nunca tinha problemas, porque já sabia o que ia acontecer. Já sabia onde ir, o que fazer, o que decidir.
- E até já sabia ao que é que ia brincar?
- Sim. Sabia tudo.
- Aaah… Oh mãe, mas assim não tem graça nenhuma!...

Imprevistos IV

Quando ela chegou aos pastéis, reparou que ele estava encostado à entrada, a escrever distraidamente no caderno que trazia sempre consigo.
- O que é que está a escrever?...
Olhou para ela, por instantes.
- Uma coisa para si.
- Pensava que fosse um livro…
Ele ficou na dúvida.
- Você sabe?
Ela riu-se.
- Não me vai oferecer um pastel?
Entraram. E conversaram muito tempo, naquele jogo de sorrisos e olhares, avançando e recuando, como quem dá e tira, atraídos por aquele mistério de sedução.
Ele disse uma última piada. Ela riu-se bastante.
- Você é tão parvo! – disse, tentando bater-lhe no ombro.
- E você é muito engraçada.
- Não sou nada.
- Isso é só para eu insistir…?
- Não…
Ele riu-se.
- É claro que é!
Ela sorriu. Já sabia o que aí vinha.
- Pare de tentar adivinhar-me. Não vai conseguir.
- Já consegui, não foi?
- Não!
Ele aproximou-se.
- De certeza?
Olhava para ela intensamente.
- Pare!
Falava cada vez mais baixo.
- Diga que não quer…
- Não quero!
Já podiam sentir a respiração um do outro. Ele desviou o olhar para a boca dela, que o hipnotizava. E, vencendo o escasso sopro que os separava, beijou-a.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Arístides de Sousa Mendes

Uma assinatura minha salva uma vida.
Basta-me escrever o meu nome, para evitar que outro nome se transforme numa memória.

E o Consulado? Seria destituído, com toda a certeza! O fim da minha carreira... A vergonha do meu nome.

Uma assinatura minha salva uma vida.
Basta-me escrever o meu nome, para evitar que outro nome se transforme numa memória.

E depois, que fazer? Ninguém se atreverá a dar-me trabalho! E as meus filhos? E a minha mulher? De que irão viver?

Uma assinatura minha salva uma vida.
Basta-me escrever o meu nome, para evitar que outro nome se transforme numa memória.

E a Pátria? Serei eu contado entre os traidores? Será algum dia reposta a justiça? Será que Deus se lembrará deste gesto?

Uma assinatura minha salva uma vida.
Basta-me escrever o meu nome, para evitar que outro nome se transforme numa memória.

-

Arístides de Sousa Mendes é um desses bravos homens que aceita, de cabeça erguida, fazer uma escolha que não queria ter de fazer. De onde me é dado que a minha assinatura possa salvar uma vida? Arístides oferece não uma, mas vinte mil, que salvaram outros tantos judeus que conseguiram o livre-trânsito assinado pelo cônsul de Bordéus, à revelia das autoridades portuguesas.

Aristides morreu pobre e desacreditado para os homens. Muitas grandes histórias só têm um final feliz no céu.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O Transmissor

- Escuto, escuto! - dizia a razão à alma.
Não parecia receber qualquer resposta.

Entretanto, proliferavam interferências de banda larga e instável, oriundas do coração.

Correspondência de Guerra

- Mas, meu general...
- Não adianta, sargento. Vamos lutar até à última gota de sangue.
O sargento revoltou-se.
- "Vamos"? Ora, meu general!
- Que diz, homem?
- São aqueles desgraçados que vão morrer! Que direito temos de atirá-los assim para a morte?
O general olhou-o com altivez.
- Deve estar farto das insígnias que traz nos ombros... Pode sempre juntar-se aos seus amigos na trincheira e morrer com eles.
O sargento mordeu a boca.
- Vá transmitir as ordens do marechal aos soldados. Não retiramos.
E fazendo menção de sair da tenda de campanha, foi detido de seguida:
- Não.
- O quê?
- Não. Vou dizer aos homens para fugirem deste inferno. Não lutamos pela Pátria, nem pela Liberdade. Morremos sim pela ganância.
- Cobarde! Prefere a humilhação?
- Não confunda coragem com orgulho. E além, disso, não haverá maior coragem que a de assumir a derrota, quando ela é real. Morrer será fugir para não ver o que vem depois.
- Acabou-se a discussão. Faça o que lhe disse ou será destituído.
- Seja.
- Raios! Que militar miserável! Não lhe falaram sobre obediência na Academia?
- A obediência é um serviço à Liberdade e não ao despotismo. Obedecer não é aniquilar a inteligência, mas confiar no líder. Merece-nos essa confiança?

O Palácio da Memória

Transporei, então, esta força da minha natureza, subindo por degraus até àquele que me criou.

Chego aos campos e vastos palácios da memória, onde estão tesouros de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda a espécie. Aí está também escondido tudo o que pensamos, quer aumentando quer diminuindo ou até variando de qualquer modo os objectos que os sentidos atingiram. Enfim, jaz aí tudo o que se lhes entregou e depôs, se é que o esquecimento ainda não o absorveu e sepultou.

Quando lá entro, mando comparecer diante de mim todas as imagens que quero. Umas apresentam-se imediatamente, outras fazem-me esperar por mais tempo, até serem extraídas, por assim dizer, de certos receptáculos ainda mais recônditos. Outras inrrompem aos turbilhões e, enquanto se pede e se procura uma outra, saltam para o meio como que a dizerem: «Não seremos nós?». Eu, então, com a mão do espírito, afasto-as do rosto da memória, até que se desanuvie o que quero e do seu esconderijo a imagem apareça à vista. Outras imagens ocorrem-me com facilidade em série ordenada, à medida que as chamo. Então as precedentes cedem lugar às seguintes e, ao cedê-lo, escondem-se para de novo avançarem. É o que acontece quando digo alguma coisa decorada.

(...)

Tudo isto realizo no imenso palácio da memória. Aí estão presentes o céu, a terra e o mar com todos os pormenores que neles pude perceber pelos sentidos, excepto os que já esqueci. É lá que me encontro a mim mesmo, se recordo as acções que fiz, o seu tempo, lugar e até sentimentos que me dominavam ao praticá-las. É lá que estão também todos os conhecimentos que recordo, aprendidos ou pela experiência própria ou pela crença no testemunho de alguém.



Confissões de Santo Agostinho

A Persistência da Memória, Salvador Dalí

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Aprender a Pensar: o meu Ideal para o Ensino

"Espera-se que o professor desenvolva no seu aluno, em primeiro lugar, o homem de entendimento, depois, o homem de razão, e, finalmente, o homem de instrução. Este procedimento tem esta vantagem: mesmo que, como acontece habitualmente, o aluno nunca alcance a fase final, terá mesmo assim beneficiado da sua aprendizagem. Terá adquirido experiência e ter-se-á tornado mais inteligente, se não para a escola, pelo menos para a vida.

Se invertermos este método, o aluno imita uma espécie de razão, ainda antes de o seu entendimento se ter desenvolvido. Terá uma ciência emprestada que usa, não como algo que, por assim dizer, cresceu nele, mas como algo que lhe foi dependurado.

(...) Em suma, o entendimento não deve aprender pensamentos mas a pensar. Deve ser conduzido, se assim nos quisermos exprimir, mas não levado em ombros, de maneira a que no futuro seja capaz de caminhar por si, e sem tropeçar.

(...) Por exemplo, o autor sobre o qual baseamos a nossa instrução não deve considerado o paradigma do juízo. Ao invés, deve ser encarado como uma ocasião para cada um de nós formar um juízo sobre ele, e até mesmo, na verdade, contra ele. O que o aluno realmente procura é proficiência no método de reflectir e fazer inferências por si. E só essa proficiência lhe pode ser útil."
Anúncio do Programa do Semestre de Inverno 1765/66, Immanuel Kant

O Advogado

Depois de inflamada dissertação sobre o Direito, seus princípios e instituições, objectivos e valores, fundamentos e elevação, e após entusiasmados aplausos da audiência, o advogado perguntou ao amigo, enquanto retirava a toga:
- O que pensa da minha defesa, meu caro Mota Soares?
O outro pensou por momentos.
- A sua defesa foi verdadeira?
- Bom, meu caro doutor, bem sabe que por vezes a verdade pode ser contada de muitas maneiras diferentes...
- Compreendo. E a sua defesa foi justa?
- Depende da perspectiva. Na perspectiva do meu cliente foi, na perspectiva do réu, não, o coitado vai ficar sem tecto porque ficou desempregado.
- Estou a ver. Enfim, a sua defesa foi útil?
- Não, particularmente. A decisão do juiz não seria alterada, a lei é clara nestes casos.
- Então, o que quer que eu lhe diga?...
- Ora, talvez pudesse ter apreciado uma certa eloquência, digo, o poder da retórica, a grandeza das palavras na solenidade do momento.
- E de facto apreciei a forma. Mas creio que a estética deve servir o argumento e nunca o contrário. Se a sua dissertação não for verdadeira, nem justa, nem útil, de que serve compor o mais notável dos discursos? Será sempre enganador na sua falsidade, mau na sua injustiça e vazio na sua inutilidade.

A Terra Prometida

Vi, no fundo da linha, onde o calor distorcia as formas e as misturava num retrato surrealista, uma espécie de tranquilidade fresca que descansava à beira de um oásis secreto. Arrastei-me pela linha do comboio desactivado, mas as minhas mãos escaldadas, que se cortavam na ferrugem do carril, deram de si. Esforcei-me mais um pouco, movido pela sombra das palmeiras que vislumbrava ao longe, mas as pernas também me caíram, e depois os braços. Caminhava há dias, sem parar, mas não saía do mesmo sítio. Sentei-me e comecei a chorar.

Lembrei-me então que trazia uns binóculos velhos no bolso do casaco já roto. Tirei-os e tentei usá-los, mas não conseguia, porque os olhos estavam cobertos de água e sal. Adormeci na minha dor. Quando acordei, envergonhei-me daquela miséria e voltei a pegar nos binóculos. Mas era noite.

Fartei-me de estar naquele deserto seco onde eu tinha pena de mim próprio e me contorcia na minha preguiça. Levantei-me, na escuridão da noite, ajudado por uma vara que surgiu misteriosamente. Vi que escorria uma enorme luz das estrelas e percebi que, por vezes, se caminha melhor de noite do que de dia. Olhei na direcção do oásis e reparei num cartaz que dizia, numa língua esquecida: «Cuidado: Miragem!». Mudei então de rumo, e aí sim, comecei a andar.

Eu não tinha nada, e pouco sabia. As minhas mãos estavam vazias e a minha alma sentia-se só. A areia fina passeava-se pelo meu corpo ao sabor do vento, deixando uma camada de pó compacto que me fazia sentir mais denso. Aqui e ali, via-se o trilho serpenteante de uma cobra ou os vestígios de um cato espinhoso. As minhas pernas ganhavam forças.

Tinha estado tanto tempo no deserto sem me desertificar! O deserto é um labirinto de desespero para quem dele foge mas uma fonte inesgotável para quem aceita cingir os rins e vestir peles de camelo por um tempo. As paisagens da nossa vida só nos largam quando nos sentem iguais a elas. Só aí terão cumprido a sua missão - a Natureza é missionária! Do mesmo modo que só conseguimos deixar de olhar uma planície alentejana quando estamos cheios de infinitude, ou uma encosta do Douro depois de nos invadir a melancolia, do deserto só se sai quando se fica vazio, abdicando de enche-lo com coisas vãs ou acessórias.

Só mais tarde, ao cruzar-me com outro João, que andava à caça de gafanhotos, percebi que seria o deserto que me faria disponível para coisas maiores do que eu.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

O Aspirador

O Aspirador sugava tudo em seu redor, consumindo com fervor qualquer pó que pousasse perto de si. «Mais, mais!», gritava ele, frenético de loucura. Enchia a sua existência de ruído, ouvindo-se apenas a si. Absorvia, controlava, aprisionava. E quando se fartava do pó que sugara, mudava de saco.

Um dia desligaram o pobre aspirador da corrente, e ele escondeu-se na dispensa.

Imprevistos III

Estava no Chiado, a fazer tempo para o almoço que combinara com o pai, que nunca mais chegava. Já esgotara, com o olhar, todas as montras de vestidos e as fachadas de todos os edifícios. Distraída com a música que alguém tocava junto ao metro, lembrou-se de ir à Bertrand. Entrou, passeando-se pela literatura portuguesa em jeito de quem não procura nada de especial. Mas houve alguma coisa que lhe chamou a atenção no suporte que se erguia no final da sala.
- Não pode ser!...
Começou a folhear o livro apressadamente, a ler os subtítulos, a ver as imagens. Procurou, na contra-capa, a descrição do autor.
- É ele...
Fechou o livro. Chamava-se «O Balão», de Luís Magalhães.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

A Máquina do Tempo: Um Inventário de Enganos

O nosso pensamento viaja, muitas vezes, numa absorvente máquina do tempo. Facilmente nos ausentamos da realidade para visitar histórias passadas ou imaginar episódios futuros, consequências naturais da memória e da imaginação. Mas quando nos aventuramos no misterioso plano do irreal, viajando entre passado e futuro, encontramos diversas armadilhas. Gostava de escrever um pouco sobre elas.

I. O Passado

A recordação do passado traz, inevitavelmente, a ideia de que, em vários momentos, eu poderia ter agido de forma diferente. Primeiro engano: julgar o passado à luz do que sei hoje. Hoje sou diferente - esse próprio acontecimento mudou-me. Hoje, quanto ao passado, já não existem incertezas - naquela altura, existiam muitas. Hoje, vejo calma e desinteressadamente - naquele momento tive que tomar uma decisão onde eu era parte interessada. Ao pensar "podia ter sido diferente" em jeito de culpa, estou a misturar os planos: queria ter decidido no passado com o que sei no presente. Esta é a armadilha de omitir a dinâmica do tempo.

Segundo engano: procurar uma causa para tudo o que me fez sofrer no passado. Numa sociedade tão científica, estamos habituados a que tudo siga uma lógica de causa-efeito. Perguntar "porquê?" parece-nos natural, talvez mesmo, um direito que nos assiste. Mas o nosso caminho não é uma jornada rigorosa, que possa ser analisada por um psicologismo puro de se isto então aquilo. Nem tudo o que nos acontece na vida tem uma razão. Perguntar "porque é que isto me aconteceu" e não obter resposta não quer dizer que ainda não a tenha encontrado. Pode, simplesmente querer dizer que não existe resposta. Em vez de justificativo, devo tentar ser descritivo, isto é, perceber o que me foi acontecendo sem o querer explicar. Esta é a armadilha de me paralisar numa falsa questão.

Terceiro engano: rever o passado com um olhar de carência. Quando nos falta alguma coisa no presente, e não a conseguimos encontrar aí, a máquina do tempo parece uma solução tentadora. Se olhamos o passado com esta pre-disposição, avaliamo-lo à luz da nossa dependência. "Se não tivesse tomado aquela decisão hoje não estaria sozinho" ou "desempregado" ou "sem a simpatia do meu chefe". Mas uma decisão bem tomada pode gerar maus momentos, isto é, um mal presente e temporário não implica que eu tenha decidido mal. Esta armadilha é a do olhar carente, que tira conclusões erradas.

II. O Futuro

A idealização do futuro traz consigo convites sedutores, que nos deixam ficar, por vezes, absorvidos por miragens. Primeiro engano: olhar para o futuro como um conjunto de fotografias em que eu apareço, em vez de um filme contínuo. É fácil imaginar-me feliz em determinado lugar, com certas pessoas ou em determinada posição. Mas, muitas vezes, nesta criação não existem entretantos. Só aparecem os momentos-chave, os instantes gloriosos, o clímax da história: receber um diploma, casar, ganhar as eleições. Não imaginamos o percurso que nos leva até aí; avaliamos apenas a fotografia do futuro pelo seu aspecto. Será que eu quero o filme, ou só a fotografia? Esta é a armadilha de sonhar uma não-vida.

Segundo engano: Assumir que o meu compromisso só começa no futuro. "Para o ano é que vai ser", "No próximo semestre é que me vou esforçar", ou ainda "Quando tiver isto e aquilo serei realmente feliz". E por agora, contento-me em sonhar esse estado, o que dá menos trabalho do que vivê-lo já hoje. Só que quando atingir esse isto e aquilo, vai faltar sempre mais qualquer coisa. Esta é a armadilha de diferir a felicidade.

Terceiro engano: Imaginar um futuro surreal, cheio de coisas que nunca serão possíveis. É verdade que sabe bem sonhar que podemos voar, que vivemos no Renascimento ou que somos o treinador do nosso clube de futebol. Mas quando este sonho se torna quotidiano, torna-se difícil sair daí. Um hábito que não se contraria gera uma necessidade, escreve Santo Agostinho. O presente que se começa a alimentar de ilusão e de mentira torna-se vazio. Esta é a armadilha de sonhar um futuro ilusório.
-
Consciente das armadilhas da máquina do tempo, vou poder aprender as sábias lições do passado e entusiasmar-me com a preparação do futuro, sem me perder na viagem.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Ad Eternum

- Para sempre.
- Como?
- Sim, para sempre. Quero ficar contigo para sempre.
- Já pensaste no que estás a dizer?
- Já.
- E... Achas mesmo que é razoável pensar isso?
- Não. Mas se o amor for só razoável, não chega. Imagina o que seria um pai pensar se é razoável arriscar a vida para salvar um filho quando ele se está afogar. Ele salta logo para o mar, não salta?
- Sim...
- Porquê?
- Não sei. Talvez porque... a ligação é tão forte! Vem-lhe do coração.
- Achas que se tivesse mais tempo pensaria melhor sobre o assunto?
- Não. Poderia ter uma eternidade. A decisão seria sempre a mesma.
- Pois é. Sabes porquê?
- Tens razão: porque quando amamos, saímos do nosso eu. Mas isto não se pode comparar a...
- Espera. Há mais uma coisa que me parece importante nesta ideia do pai: é que o amor verdadeiro é incondicional.
- Então?
- O pai não salta apenas se souber que vai conservar a sua vida, ou se souber que vai conseguir salvar o filho. O pai salta, e pronto. Quando as pessoas se amam se isto ou se aquilo, aí sim, é pouco provável que fiquem juntas para sempre. "Amo-te se fores divertida, amo-te se fores arrumada, amo-te se ficares a estudar em Lisboa." E no dia em que isto, por alguma razão, deixar de acontecer? Acaba-se o amor? O amor temporal é um se em forma de enquanto.
- Mas parece-me humano ter dúvidas. Como é que posso saber que vou ficar a vida inteira ao lado da mesma pessoa?
- Claro que não sabes... Eu também me assusto ao pensar que vou ficar com alguém para sempre. No fundo, tenho medo de me fartar, de deixar de ter conversa, de caír na monotonia, enfim, de perceber que me enganei. Isso acontece com muitas pessoas, por isso este medo é realista. Mas a questão é... qual é que é a tua meta?

Noite de Verão

Estava uma noite mágica de Verão. O céu, salpicado de estrelas, cativava pela sua infinitude. Jesus deitou-Se ali mesmo, naquele pedacinho de relva perdido no mundo. Estava fascinado pelo alcance do Seu olhar. Por vezes passava as mãos pelos olhos para saber que não era apenas um sonho. E depois sorria, com aquele sorriso que só Ele sabia fazer.
Começou a pensar nos Seus amigos. Lembrava-se de um Pedro apaixonado que Ele carinhosamente tratava por irmão. Visitava-O a expressão decidida de João, que Ele adorava tirar do sério. Recordava as boas piadas de Tiago, cuja alegria sempre O tocava. Depois, lembrou-Se do cego que se atirara a Seus pés, naquela tarde, suplicando Misericórdia. Os olhos de Jesus ficaram brilhantes com esta recordação. Um só gesto Seu bastou para que Bartimeu visse. Aquele primeiro olhar de Bartimeu foi impressionante, uns segundos de silêncio que valeram uma eternidade. Quanto se amaram, nesse instante! E depois Bartimeu seguiu-O, na longa estrada empoeirada de Jericó.
- Obrigado Meu Pai! - Soltou Ele, enquanto os seus dedos brincavam com a relva.
Deteve então o Seu olhar na lua. Jesus gostava imenso de olhar a lua e de Se deixar seduzir pela sua magia. Jesus estava feliz. Aqueles momentos a sós com Deus Pai realizavam-No, faziam-No crescer. Sentia uma imensa paz, apesar do grande número de pensamentos que trazia consigo.
E enquanto olhava a lua, e rezava, deu-se, de repente, um "click" que O fez saltar de entusiasmo.
- Ena! Como é que ainda não Me tinha lembrado!....
Precisou de um lápis e de uma folha que logo apareceram. Sorriu. E começou a desenhar-me. Desenhava-me com toda a perfeição, cada traço era feito com cuidado e Amor. Fazia imensos efeitos com o carvão, e à medida que os fazia, compreendia-me. Por vezes, com certos riscos mais fortes, acenava docemente com a cabeça. E ia olhando com cumplicidade para o Céu, de onde Deus Lhe ia guiando a mão que desenhava.
Esteve toda a noite nisto. E, por fim, olhou-me, nos meus olhos. Amou-me profundamente. E assinou o meu retrato, como o pintor que assume uma obra.
Ergueu-Se, e deu Graças ao Pai, de braços abertos. E mal abriu os braços, lembrou-Se da cruz que O esperava daí a umas semanas. Então olhou para o meu retrato e sussurrou-me, comovido: "É por ti".Depois, guardou-me na Sua túnica, e seguimos juntos pelo caminho.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Às armas! (Discurso para o dia da Restauração)



A responsabilidade de um português do século XXI em nada é inferior à dos grandes conquistadores que ergueram, à custa de tanto suor e sangue, a nação mais antiga da Europa. A responsabilidade de um português do século XXI nada deve à dos bravos navegadores que, cruzando os mares, levaram a nossa língua aos quatro cantos do mundo. A responsabilidade de um português do século XXI não é menor do que a dos ilustres restauradores que, com amor à bandeira, se bateram corajosamente pela independência da nação.

A responsabilidade de um português do século XXI, a nossa responsabilidade, é construir o Portugal Maior que todos desejamos, o Portugal que de cauda da Europa se faça cabeça, uma ponte entre a Europa e o Mundo. A nossa responsabilidade é lutar, com todos os meios de que dispomos, por uma sociedade de progresso verdadeiro, cujos faróis sejam a Justiça e a Equidade, e cujos instrumentos sejam o trabalho árduo e o compromisso.

Portugueses: festejemos a independência da nação; mas deixemos de ser independentes da nossa sociedade. Sejamos, sim, independentes no pensamento e no espírito, para que vejamos sempre, com lucidez, aquilo que o país nos pede. Hoje, eu digo-vos: Portugal pede-nos envolvimento.

Reparai num Mundo dominado pelo desânimo e pelo descompromisso: Poderá, o nosso país, ser um exemplo de que a crença profunda na mudança transforma, de verdade, a sociedade?

Sim! Basta querermos.

Este é o tempo da unidade. Este é o tempo da restauração. Restaurar é reerguer, retomar, recomeçar. Neste dia de memória olhemos então para a frente.
Levantemos as nossas armas - o nosso trabalho e o nosso intelecto.
Mobilizemos mais forças - os nossos pais, filhos, e amigos.
Confiemos nos nossos generais – a Democracia e a Providência.
Nesta nova batalha, todos os braços são necessários, todas as vozes são precisas. Como poderemos não responder ao desafio?

Empenhai-vos, cada um de vós, no vosso trabalho. Interessai-vos e discuti as causas que vos preocupam. Envolvei-vos em associações, em partidos, em debates. Exigi, da classe política, um trabalho tão esmerado quanto o vosso. E lembrai-vos de todos aqueles que precisam de vós – e são tantos os que precisam! Porque o Portugal Maior só será possível numa cultura de entreajuda e solidariedade.

Não aceitaremos o imobilismo.
Não pactuaremos com a inércia.
Não aspiraremos um futuro pior do que o melhor possível: e esse futuro melhor, está nas nossas mãos.

A nossa missão é ser Portugal.
Viva Portugal!

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Imprevistos II

Nessa noite, ele leu e releu as mensagens que trocaram, enquanto se rebolava na cama.

Apesar de ter um péssimo humor, deixou-me a pensar em si. E se viesse tomar um café comigo?...

Veja lá, eu não me lembrei de si nem uma vez. Deve ser do meu mau humor... Onde é que me vai levar? Olhe que eu tenho medo de desconhecidos. Traga aquilo de que falou… E nada de surpresas, ouviu?

Você é engraçada!... Não se preocupe, vamos só a Belém e não vai lá estar à sua espera um balão pronto para levantar voo. (Você gostava, não gostava?). Nos pastéis ao fim da tarde, parece-lhe bem?

Sim, parece-me bem! Um dia ofereça-me o balão… Pode ser que eu o convide para me fazer companhia. Um beijo

...quem sabe. Nada melhor do que voar acompanhado. Durma bem!

domingo, 11 de janeiro de 2009

As contas de Deus

Para Ti, somar não quer dizer acumular: o crescimento é da ordem do ser e não do ter. Ganho quando me mobilizo, aumento quando me empenho, ultrapasso quando amo.
Para Ti, subtrair não quer dizer perder: hoje fico com menos para amanhã ser mais. Fecho para abrir, choro para rir, parto para chegar.
Para Ti, multiplicar não quer dizer repetir: a abundância revela-se num pouco que se faz muito, de forma dinâmica. Cada dia é diferente do anterior, cada homem é especial, cada palavra tem um significado diferente em cada momento.
Para Ti, dividir não é separar: a partilha gera união. Ligo-me sempre que ouço, sempre que rezo, sempre que ofereço.
Leva-nos para a Tua Primária e ensina-nos a fazer novas contas.

Porto (In)seguro

O pescador, admirado com a forma apaixonada como a nazarena, embrulhada no seu traje negro de muitas camadas, se destraía a olhar o horizonte enquanto salgava o peixe que ele lhe trazia, perguntou-lhe:
- O que é que amas?
- O mar.
- O que é que queres verdadeiramente?
- Pescar.
- Então, porque é que não arriscas...?

A Sombra

Às vezes as forças fugiam-lhe, desvanecendo-se misteriosamente. Multiplicavam-se então as pequenas necessidades, coisas inúteis cujo verdadeiro propósito era a distracção. «Foges!», sentia ele no seu coração. E quanto mais o sentia, mais imperativa se tornava a fuga. Os pensamentos tornavam-se mais cinzentos, e tudo parecia oco, vazio. Havia uma perturbação inexplicável, injustificável. Um travo amargo de quase. «Poupa-te!», recomendava-lhe essa voz que o endurecia de cepticismo. Perdia-se então em esquemas, deduções, charadas. Se...! E depois, surgiam os afectos miragem, que prometiam preencher mas que apenas esvaziavam.

Num desses dias, enquanto passeava sozinho pelo cais à procura não sabia bem de quê, reparou que alguém o acompanhava. Era a sua sombra. Estava definhada, encolhida sobre si própria. Lembrou-se então de alguns momentos em que a sua sombra fora muito maior do que o seu corpo. Recordava, em particular, as vezes em que a sombra o reflectira em quatro direcções, sem sequer se conseguir ver o seu limite. E apercebeu-se de que a sombra era apenas uma imagem de si próprio, projectada pela luz que o iluminava.

Começou, nesse dia, a pensar que tipo de luzes fariam a sua sombra ser gigante.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Imprevistos I

Cruzaram-se de repente.
- Desculpe, eu... Aaa...
- Não, eu é que...
- Eu distraí-me e...
Riram-se de embaraço. E olharam-se. Ele sorriu.
- Ainda bem, então.
- Desculpe?...
- Ainda bem que se distraíu. Assim pude olhar melhor para si.
Ela gaguejou.
- Não fique atrapalhada. Até porque já deve estar habituada...
Ela riu-se. Ele continuou:
- Deixe-me fazer-lhe uma pergunta.
- Espero que não me vá perguntar o meu nome...
- Estava cheio de vontade.
Ela abanou a cabeça, sorrindo, em jeito de quem entra no jogo.
- Seja um cavalheiro e diga-me primeiro o seu.
- Luís. E o seu?
Ela ficou a estudá-lo com o olhar.
- Não acredito que... - disse, olhando para o lado, e logo depois para ela - Não pode fazer bluff!
Ela riu-se novamente.
- Não estava a pensar nisso.
- Vê? - soltou ele, vitorioso, abrindo os braços - Você ía fazer.
- E se calhar ainda vou...
- Se calhar. - resignado - Mas depois, que piada é que tem?
Ela fez-se desentendida.
- Que tem... o quê?...
- Pare!... Diga lá, como é que se chama?
- Maria... Maria do Carmo.
Sentiu-se um impasse. Ele procurou qualquer coisa para dizer.
- Deu-me tanto trabalho que agora me deixou sem conversa.
- Não me parece que seja do género de ficar sem conversa...
Ele sorriu.

...

- Você sabe o que é que eu vou ter de lhe pedir.
Ela riu-se.
- Não peça.
- Dê-me o seu número de telefone.
- Porque é que haveria de lhe dar o meu número de telefone?
- Porque se não der, nunca vai saber.
- Você fala uma linguagem esquisita. E eu tenho mesmo de me ir embora.
- Está bem.
Ela ficou imóvel e surpresa com a resposta. Ele prosseguiu, com toda a calma:
- É por isso que me devia dar o seu número de telefone.
- Você irrita-me.
E deu-lho.

O Viajante

O louco passeava-se pela cidade comprometido com a sua causa: ria, pensava um pouco, metia conversa com as pessoas na rua. Era tão frequente encontrá-lo em momentos de completo desatino como em períodos de pura abstração. Era um homem conversador e distraído, sempre enfiado no seu colete cinzento desbotado, de onde escorregava o relógio de bolso. Dir-se-ia que vinha de outro tempo, que vivia noutro espaço. Quando lhe perguntavam o nome, ele respondia, solenemente, "o viajante".
- Sabes, meu caro Fernando, estou um pouco farto de ver as pessoas troçarem de mim, como se eu tivesse algum problema! - confessava ele à antiga estátua da Brasileira - E, pior: dizem "é louco", com um ar grave, que eu não percebo. Podiam dizer também "é alto", ou "é moreno", ou ainda "é parvo", mas não: sempre a darem-lhe com o louco.
Deixou-se estar um pouco a saborear o café na sua chávena invisível.
- Enfim, nada me vai deter. É preciso prosseguir com a campanha. - disse, levantando-se de rompante.
Mas logo se deixou cair novamente sobre a cadeira da esplanada.
- Ora! Vão continuar sem me perceber.
Nesse momento, o empregado, que já o ouvia há algum tempo, chegou-se perto dele e perguntou-lhe, divertido:
- Então diga lá, você anda a fazer campanha pelo quê?
O louco fitou o homem com um olhar agradecido. E declarou:
- O meu manifesto resume-se numa palavra: leveza. Afinal, para que serve um louco senão para que os outros percebam que são demasiado sérios?

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

O Eterno Desconhecido

- Boa tarde. Posso fazer-lhe uma pergunta?
O velho fitou-o com um olhar desconfiado.
- Diga lá... Mas olhe que...
- Não se preocupe - interrompeu - Não lhe quero vender nada. Nem quero sequer tomar-lhe muito tempo. Afinal, as coisas verdadeiramente importantes são simples e têm pouca conversa.
- Mas quem... eu... ora! - resmungou, encolhendo os ombros, e regressando às redes que arranjava.
- Olhe lá bem para mim.
O velho olhou-o então de lado, movido pela curiosidade.
- Não o conheço. O que é que queria saber, afinal? Olhe que eu não tenho o dia todo!
- É verdade, nunca me viste. Mas fui passando por ti ao longo da tua a vida...
Assustado, o velho distraía-se nervosamente nas redes.
- Mas quem é você?
- Fui horas, dias, anos. Fui verões, luas e marés. Fui o fluxo indelével que te levou pela vida fora. Sou a origem da memória! Curei-te feridas, ao meu ritmo compassado. Dei-te vigor e sabedoria. Levei-te para longe da tua dor. Sou a chave do crescimento! Agora retiro-te parte do que te dei, pois é essa a minha natureza. Afecto a tua lucidez, canso os teus membros, confundo os teus sentidos. Sou a marca da mortalidade!
O velho largou as redes vagarosamente, e pousou o seu olhar sobre o mar. E disse, com um suspiro:
- Tu és... o tempo!
O tempo envolveu-o então no seu abraço, que era, ora pacificador, ora inquietante.
- Demorei-me sempre o mesmo, apesar de tu não achares.
O velho deixou cair uma lágrima cheia de saudade.
- É verdade, umas vezes nem te senti, outras pesaste-me duramente... - disse, demorando-se em memórias longínquas.
E perguntou então ao tempo:
- Acabaste?
- Sim...
- Leva-me então. Sei que não és um fim.
O tempo sorriu languidamente. E exclamou:
- Espera, falta a pergunta!
O velho baixou os olhos. O tempo apertou-lhe o braço freneticamente, e disse:
- Sabias como sou breve. Quantos avisos te dei! Porquê, porque é que adiaste?...
O velho não respondeu. E mergulhou na eternidade.

Ao Mar!

Saltai, marinheiros, saltai!
Alimentai a vossa sede de Mar!

Vêde os sinais!

Eis a brancura da espuma - é a nata de um mar que ferve!
Senti o ardor da maresia - é o odor de uma lareira em brasa!

Vêde, vê-de o mar que arde!

Não vos apercebeis da vossa própria perdição?...

Navegais de mar em mar,
Cuidando que são as águas a causa do vosso abandono - mas não!

É essa barca,
Esse bote fétido em que navegais o motivo da vossa ruína!

Dai as vossas ordens, timoneiros!

Ao mar, ao mar!

Largai a embarcação corrompida!
Deixai as velas manchadas!
Esquecei os falsos capitães!

Ao mar, ao mar!

Vêde: há uma caravela no horizonte!

A decisão

Decidi, finalmente, concretizar uma ideia em que me tenho demorado nos últimos meses: criar este blog, onde pretendo contar-vos algumas das coisas que ocupam o meu pensamento e o meu coração.

Gosto imenso de escrever, mas apercebi-me de que só escrevo alguma coisa verdadeiramente boa quando a quero oferecer a alguém. Só assim me esmero, só assim me ponho por inteiro numa folha de papel.

Por isso, este blog é um presente para quem o quiser receber.

E assim conseguirei acolher com alegria a solidão de um moleskine nos fins de tarde em Belém.