segunda-feira, 27 de abril de 2009

A Casa sem Paredes

O velho, seguindo o canto das gaivotas, remou, no seu pequeno barco de madeira, até à jangada tosca em que o náufrago derivava há já vários dias. Ao ver o velho, o náufrago, chorando de alegria, perguntou-lhe quem o enviara, para que ele lhe fosse agradecer e pôr-se ao seu serviço. O velho sorriu.
- Chama-se Deus.
O náufrago perguntou-lhe então onde morava Deus, para que ele o visitasse.
- Vem ver!
O velho começou a remar e foi-lhe mostrando os lugares do Mundo. Levou-o ao gelo dos polos e ao calor dos trópicos. Mostrou-lhe ilhas paradisíacas e rochas tenebrosas. Apontou-lhe outros náufragos e capitães de grandes navios. E, por fim, enquanto lançava a âncora do barco, soltou:
- Em tudo o que viste habita Deus.
Os olhos do náufrago brilhavam. Mas o velho continuou.
- Mas tu ainda não viste a sua obra mais extrordinária!...
E aí desapareceu, deixando, no lugar onde se sentara, um pequeno espelho por onde o náufrago se olhou nos olhos.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

O Espaço e o Tempo

A caravela largara o cais de Belém há já algum tempo, mas Francisco Valladares não distraía o seu olhar de Lisboa, que desaparecia do horizonte. A certa altura, o capitão, encontrando-o de olhar fixo na silhueta da cidade, veio meter conversa.
- Agora, apenas teremos o mar por companhia...
Valladares parecia distante. Soltou então:
- Já viu? A torre de Santa Maria que, em seu redor, nos parece tão imponente, não é agora mais que um pequeno ponto no horizonte. Ainda há instantes era tudo, mas agora fez-se nada. Diluíu-se no espaço!
O capitão tirou o chápéu e coçou a cabeça. Respondeu:
- Como qualquer paixão, resta-nos a recordação.
- Mas também essa se desvanece, consumida pelo tempo...
- Talvez... Mas as recordações deixam sempre um sabor de si mesmas, ainda que o facto que as gerou já se tenha perdido. Não se lembrará de impressões passadas cuja origem desconhece?...
- Sim, claro. Mas são tão vagas e estranhas que não me atreveria a remexê-las.
O capitão sorriu e voltou a colocar o chapéu.
- Vai fazer-lhe bem este tempo de mar, meu caro senhor.
Fez menção de sair dali, mas Francisco deteve-o.
- Porque é que diz isso?
O capitão olhou-o por instantes.
- Sabe... A vida no barco faz-nos mais sinceros. Não temos para onde fugir!

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Quaresma

Nós te damos graças, Deus,
pela hora que passa,
pelo sonho do fundo da noite
que mantém vigilante o nosso desejo do Encontro.
Nós te damos graças
porque no grito da vida nua,
no labor e no repouso nos procuras.
Nós te damos graças
porque o teu Filho com as suas mãos tocou
a luz e a treva de que somos feitos
e nos enxugou as lágrimas
quando a navalha da morte nos feriu.
Nós te damos graças
porque nos saras do sistema mundano do agir
e nos emprestas a coragem que falta
para atravessar o mar das palavras sufocadas
e renascer através do esquecimento de nós próprios.
Nós te damos graças
pelo sopro que revigora o junco esmaecido
e nos liga ao caminho que nos leva à vida.

(...)

Carlos Furtado, op e amigos

O Caranguejo

Certo dia, reparei num caranguejo que se passeava à beira-mar, saltitando entre um lugar e outro, cavando aqui e estacando ali, sem se perceber bem porquê. Os pequenos olhos negros sobressaíam-lhe na frágil carapaça encarnada, que reluzia sob o sol escaldante. Por vezes, demorava-se sobre a espuma fina que o mar lhe trazia, rebentando distraidamente as suas bolhas. Outras vezes, apressava-se a fugir de uma vaga mais forte da maré que começava a encher.
O caranguejo vivia no limite incerto que separa a praia do mar, não havendo maneira de se decidir. Fugia assustadamente sempre que alguém se aproximava, até mesmo de uma criança que quisesse admirar a destreza das suas patas. Nas suas estranhas caminhadas, apenas andava de lado.
Decidi seguir o caranguejo e investigar a sua vida secreta. Esperei então, escondido por detrás das rochas, que o sol se diluísse no mar e a lua subisse ao palácio de onde governa a noite. À medida que entardecia, o caranguejo ficava cada vez mais nervoso, andando para a esquerda e voltando para a direita. Por fim, a noite caíu, e a lua surgiu no céu. Inesperadamente, o caranguejo paralizou-se, com o olhar fixo no astro, que deitava o seu reflexo límpido sobre o pequeno corpo encarnado. E aí reparei que lhe caíam lágrimas de emoção dos pequenos olhos negros.
- Estive o dia todo a olhar para ti... - disse a lua.
- Não é justo! Tu podes ver-me o dia todo, mas eu tenho de esperar pela noite. Ainda por cima, às vezes amuas e ficas três dias sem aparecer. És uma lua muito má.
A lua brilhou intensamente. Poderiam contar-se todas as suas crateras e mares.
- Oh, assim não vale... - disse o caranguejo, escondendo os olhos atrás da pata.
- Sabes que eu tenho mau feitio... Vá lá, não te zangues comigo.
Ele concedeu.
- Agora conta-me mais uma vez: como é que é o fundo do mar?...
- Só depois de me dizeres como é que é o outro lado do mundo!
Ficaram a conversar durante horas, tantas quantas a noite lhes ofereceu. E por fim, quando o sol já começava a espreitar o horizonte, ele escreveu qualquer coisa na areia, com as patas, que mereceu um sorriso cúmplice da lua.
Quando a lua desapareceu, e depois de o caranguejo se ter aventurado no seu banho matinal, saltei as rochas e fui ver o que ele escrevera. Não podia acreditar:

Nada é impossível, amigo Xavier.