quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Imprevistos V

Quando chegou a casa dele, chovia intensamente.
- Acha que merece?... – perguntou ela, apontando para a roupa molhada.
Ele riu-se.
- Tenho uma camisa que lhe vai ficar lindamente.
Cheirava a café. Luís correu a desocupar o sofá que estava cheio de livros.
- Desculpe a desarrumação…
- Como se eu já não soubesse! – disse, olhando para a lareira que crepitava – E esse café?...
Ele foi buscá-lo. E, na tampa da cafeteira, trouxe, enrolada, uma folha escrita a preto.
- Já reparou que o café sabe melhor quando traz um imprevisto consigo?
- Só conhecia as frases dos pacotinhos de açúcar… - respondeu ela, desenrolando a folha.
Leu-a. E abanou a cabeça, sorrindo.
- Você…
Ele envolveu a chávena de café com as mãos, olhando-a, de seguida.
- Inspiras-me
Ela corou.
- Esta casa é… - disse, levantando-se, e olhando pela janela que deitava para a encosta do castelo – igual a ti…
E virou-se para ele. Ficaram a olhar-se por um instante. Ela voltou a distrair-se na janela. Luís ergueu-se, e foi abraçá-la por detrás dos seus ombros. Continuava a chover abundantemente.
- Estava tudo muito certinho antes de eu aparecer na tua vida, não estava?... – perguntou ele, em segredo.
Ela virou-se, irritada, e fitou-o.
- Sim, estava, seu…
Ele beijou-a ternamente.
- Mas assim é muito melhor, blackberry.
Ela riu-se.
- O que é que eu tenho a ver com amoras?...
- Se tu fosses uma fruta serias uma amora silvestre. Das escuras… Meeting Miss Blackberry, é assim que lhe vou chamar. Gostas?...
Ela acenou, devagarinho, e deixou que ele a beijasse sob o som cruzado da chuva e da madeira em brasa a estalar.

A pequena folha da cafeteira escorregou para o chão, pousando sobre o tapete. Poderia então ler-se, numa letra discreta: “Estou a escrever um livro para ti.”

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Considerações sobre a Corrupção

1. A corrupção não é a característica de um regime, mas uma marca da natureza humana.

2. A corrupção emerge, ou da necessidade, ou da ganância.

3. O combate eficaz da corrupção, ao nível preventivo, situar-se-á, portanto, em dois planos: (a) a promoção do bem-estar económico-social e (b) a moralização da sociedade.

4. A noção de impunidade multiplica a corrupção.

5. A eficácia judicial será assim o terceiro plano do combate à corrupção ao nível preventivo.

A Perdição

Calou-se a Arte, para te deixar passar.

Não escreveu uma só palavra,
Não pintou nenhum retrato,
Não compôs qualquer música.

O belo eras tu.

Fascinada, a Arte quis olhar-te sob todos os seus prismas,
Fotografando-te e esculpindo-te no seu imaginário,
Dançando e cantando em redor dos teus ombros.

Tu ficaste num misterioso silêncio.

Quis a Arte esconder-te para não seres descoberta,
Morrendo de ciúme e de medo do lânguido acenar da Matéria,
Que, de dentro, te prometia os seus demorados prazeres.

Tu insinuaste-te à Matéria.

E a Arte, ao ver-te escapar dos seus pincéis, enlouqueceu,
Numa fúria de desejo cego que te afastava ainda mais,
Perdendo-se, só, numa miragem de dor aguda.

Tu dissipaste-te.

A Arte odiou-te na sua ruína.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Carta de um Missionário Distante

Segundo o que consta em cartas anteriores, Pedro Moniz deixara, há alguns meses, a comunidade onde trabalhou durante um ano, uma pequena Igreja no meio de uma enorme cidade, para onde conseguiu atrair muita gente que pouco ouvira falar de Deus. Atento aos desafios da vida em cidade, e sensível à fragilidade da semente que Deus aí lançou, mantém intensa correspondência com a comunidade, que lhe vai fazendo chegar as suas dúvidas e receios.

Esta carta não faz qualquer menção temporal; não conseguimos, portanto, datá-la. Não encontrámos nenhum registo da existência de Pedro Moniz. Tão pouco nos pronunciaremos quanto à natureza dos seus escritos, apenas os publicando, neste espaço, pela singela marca da sua assinatura, a saber: «Pedro Moniz, Alegre Servo do Senhor».


Meus Irmãos;

Queira Deus que através das minhas palavras encontre consolo a vossa tribulação. Eu, enviado por Cristo a falar-vos do Evangelho, em Cristo partilho a vossa inquietude, que é uma marca da condição humana. Mas nem assim se afasta o meu coração dos firmes propósitos que o Senhor me comunicou, pois sei em quem pus a minha confiança.

O mundo convida-nos permanentemente a moldar o nosso desejo e vontade às circunstâncias. Pois eu digo-vos: sede como mexilhão firme, incrustando-vos no Senhor Jesus; não sejais como as algas, que apenas seguem o movimento das marés. Não confundais a flexibilidade cristã, que é fruto da confiança e da disponibilidade, com o relativismo pagão, que vos leva para longe da vontade verdadeira. Vós, que sois relativos, encaixai-vos apenas no absoluto, que é o único que vos pode completar. Se um relativo se alimentar de coisas relativas, como poderá exceder-se? Vós sois vasos, e não os seus moldes. Não vos afasteis da vossa natureza de decisores, deixando que outros escolham por vós. Se o sal perder o seu sabor, é inútil e é lançado fora. Antes conquistai os outros com o vosso sal intenso, para glória do vosso Pai que vos olha e ama.

A cidade move-se depressa e a toda a hora sois solicitados para novas coisas. Lembrai-vos que nada nos foi proibido, mas nem tudo nos convém. Vós quereis fazer a vontade de Deus, mas andais divididos na forma de a conhecer. Confiais em demasia no juízo da vossa mente, que é hábil e eloquente, e desconfiais da linguagem do coração, que é sábia e iluminada. Eu digo-vos: à semelhança de Maria, ponderai todas essas coisas no vosso coração. Não vos deixeis guiar pelas sensações; porém, não chameis de sensação à voz ardente que fala no interior do vosso coração. Construí uma ponte entre o coração e a razão para que colaborem na descoberta da Verdade, ao invés de divergirem. Se a vossa perna direita discutir com a esquerda, querendo ir uma para a frente e outra para trás, acaso chegareis a algum lugar? Do mesmo modo que o vosso corpo está coordenado, coordenai o vosso interior. Este é o vosso trabalho: preparar o caminho do Senhor dentro de vós.

No mais, não vos inquieteis, pois uma só coisa é necessária. Vós sois de Cristo e, por isso, aspirais viver em amor. Como nada nos pode separar do amor de Deus, já sois amados, de forma incomparável; amai muito, e assim completareis a vossa aspiração. Do mesmo modo, se muito amardes, muito vos será perdoado. Vencei o pecado através do amor e não da regra. Este será um sacrifício agradável a Deus que vos aproximará do Seu modo, pois Deus é perfeito e a caridade é o vínculo da perfeição.

Lembrai-vos em cada momento de desânimo que Deus vos segreda: és precioso a meus olhos. E em cada vez que a sombra da dúvida vos fizer hesitar entre o bem menor e o bem maior, procurai, na vossa alma, o fogo ardente de Cristo que sussurra: Tu, segue-me.


Convosco, em Cristo,

Pedro Moniz,
Alegre Servo do Senhor

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

O Sem-Graça

Antes de dormir, a mãe costumava sempre contar-lhe uma história.

Era uma vez um senhor que vivia na América…

- Oh mãe, onde é que fica a América?...
- Fica do outro lado do mar.
- Aaah… Mas dá para ver na praia?
- Não… É muito, muito longe…

Na América, as pessoas recebem, todas as manhãs, um jornal à porta de casa. Quando abrem a porta, o jornal já lá está à espera!...

- Ah! É como no Natal?
- Sim…
- Então na América é Natal todos os dias! Podemos ir viver para a América?
A mãe riu-se.

Só que o jornal que esse senhor recebia era diferente de todos os outros. Normalmente, os jornais contam as coisas que aconteceram no dia anterior. Mas esse jornal contava as coisas que se iam passar nesse dia!

- Então ele já sabia o que ia acontecer?
- Sim! Assim podia antecipar as coisas. Nunca tinha problemas, porque já sabia o que ia acontecer. Já sabia onde ir, o que fazer, o que decidir.
- E até já sabia ao que é que ia brincar?
- Sim. Sabia tudo.
- Aaah… Oh mãe, mas assim não tem graça nenhuma!...

Imprevistos IV

Quando ela chegou aos pastéis, reparou que ele estava encostado à entrada, a escrever distraidamente no caderno que trazia sempre consigo.
- O que é que está a escrever?...
Olhou para ela, por instantes.
- Uma coisa para si.
- Pensava que fosse um livro…
Ele ficou na dúvida.
- Você sabe?
Ela riu-se.
- Não me vai oferecer um pastel?
Entraram. E conversaram muito tempo, naquele jogo de sorrisos e olhares, avançando e recuando, como quem dá e tira, atraídos por aquele mistério de sedução.
Ele disse uma última piada. Ela riu-se bastante.
- Você é tão parvo! – disse, tentando bater-lhe no ombro.
- E você é muito engraçada.
- Não sou nada.
- Isso é só para eu insistir…?
- Não…
Ele riu-se.
- É claro que é!
Ela sorriu. Já sabia o que aí vinha.
- Pare de tentar adivinhar-me. Não vai conseguir.
- Já consegui, não foi?
- Não!
Ele aproximou-se.
- De certeza?
Olhava para ela intensamente.
- Pare!
Falava cada vez mais baixo.
- Diga que não quer…
- Não quero!
Já podiam sentir a respiração um do outro. Ele desviou o olhar para a boca dela, que o hipnotizava. E, vencendo o escasso sopro que os separava, beijou-a.